ISABELLA MENON
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
“50tinha por uns corte nos pulsos?”, questiona um usuário em uma comunidade de ódio online. Crianças e adolescentes estão sendo atraídos para práticas de automutilação com a promessa de pagamento.
É o que mostra um relatório elaborado pelas pesquisadoras Letícia Oliveira e Tatiana Azevedo sobre a plataforma de conversas Discord e uma investigação da Polícia Federal. A empresa afirma lamentar o uso criminoso de servidores e que trabalha para coibir esse tipo de ação.
Desde 2023, casos de comunidades de ódio, que incentivam a prática de crimes e de violência, vêm sendo descobertos na plataforma. Nos três primeiros meses de 2025, denúncias sobre o Discord continuaram em alta. De acordo com a ONG Safernet, houve um aumento de 172,5% nas denúncias de janeiro a março se comparadas com o mesmo período do ano passado.
Em uma troca de mensagens em um dos grupos estudados pelas pesquisadoras, os usuários afirmam que um dos líderes está oferecendo dinheiro por “lulz”, termo derivado do “lol”, que em inglês significa “rindo alto”.
A palavra lulz é usada por integrantes desses grupos, chamados panelas, e se refere a uma série de ações danosas que ocorrem nesses servidores por meio de ligações de vídeo com horário marcado e anúncio em outros servidores para garantir mais visualizações.
Lá, jovens são induzidos a diversas violências, como automutilação. Muitas vezes, o usuário é obrigado a escrever o nome dos servidores em partes do corpo com objetos pontiagudos, como forma de reconhecimento.
Segundo a PF, a remuneração oferecida a quem participa desses desafios varia de R$ 30 a R$ 200.
“Eles escrevem o nome dos servidores ou dos membros do grupo, ou uma letra do nome do grupo. E aí, eles pagam. No rosto, é mais caro, assim como no pescoço. Na perna ou na coxa é o mais barato”, explica o delegado federal Flávio Rolim, chefe da Urcod (Unidade de Repressão a Crimes Cibernéticos de Ódio).
“Quando começar um fluxo financeiro com isso, nós teremos pessoas produzindo e vendendo esses conteúdos. Pessoas que odeiam aquele tipo de vídeo, mas produzem e vendem pela questão financeira”, alerta o delegado.
Segundo o delegado, já foram identificadas transações via Pix e até por meio de criptomoedas.
Casos como esses têm sido alvo de outras investigações. Em São Paulo, foi criado o Noad (Núcleo de Observação e Análise Digital) pela SSP (Secretaria de Segurança Pública) do estado para investigar mais de perto grupos online que incentivam e propagam crimes. No fim do ano passado, foi deflagrada uma operação para prender e realizar busca e apreensão em investigados.
Em abril, a polícia do Rio de Janeiro deflagrou uma operação contra uma organização criminosa que usava a internet para induzir crianças e adolescentes a propagar crimes de ódio, fazer apologia ao nazismo, divulgar fotos de exploração sexual infantil e maus-tratos de animais.
O relatório das pesquisadoras mostra que comunidades têm uma hierarquia definida, sendo o criador daquela panela uma espécie de líder. O acesso é concedido, geralmente, por meio de links que não costumam ser divulgados publicamente a fim de manter apenas integrantes dentro do círculo de confiança.
Porém, pode acontecer de esses links ganharem fama e serem divulgados em outras redes.
É comum que, além de mutilações, meninas sejam vítimas de estupro virtual -sendo submetidas a sessões ao vivo em que são expostas para outra pessoas e obrigadas a mostrar partes do corpo ou introduzir objetos pontiagudos na genitália. Entre outras torturas já observadas estão o consumo de substâncias nocivas, queimaduras, arranhões, espancamento e arrancamento de cabelos.
Procurado, o Discord volta a afirmar que tem política de “tolerância zero” para atividades ilegais e que, assim que toma conhecimento desse tipo de conteúdo, age imediatamente e aplica medidas cabíveis que vão desde o banimento a derrubada de servidores.
“Reiteramos de forma veemente que esse tipo de conteúdo não tem lugar na nossa plataforma, e seguimos totalmente comprometidos em colaborar com as autoridades locais para ajudar a garantir um ambiente seguro e positivo para todos os nossos usuários no Brasil”, diz a empresa, em nota.
Para o delegado Rolim, é preciso observar que a plataforma não é a única relacionada à propagação desses crimes.
“O problema não é o Discord. O problema não é a moderação do Discord. O problema não é a legislação. O problema é tudo isso funcionando junto”, diz ele, apontando o crescimento de grupos extremistas online, a facilidade de acesso às plataformas, principalmente, o abandono de jovens no ambiente cibernético.