Encerramos com esta quarta coluna a análise da série Adolescência, a partir das reflexões das professoras Heloisa de Vivo, Ângela Anastácio e do professor Vitor Barros, da Unieuro. A experiência foi enriquecedora e gerou repercussões importantes, que nos incentivam a seguir com análises que conectem cultura, educação e temas urgentes como este.
Quarta e última parte
A cena parece comum: corredores barulhentos, provas marcadas, celulares nos intervalos. Mas em Adolescência, o que se esconde por trás desses corredores é mais denso — há misoginia, desprezo e ódio. No caso de Jamie, isso culmina em um assassinato.
A violência de gênero nas escolas não é novidade, mas continua sendo tratada como “casos isolados” ou “coisa de adolescente”. Essa visão fragmentada e despolitizada permite que o ódio cresça — e pior, que se normalize. A série mostra, com brutalidade e delicadeza, que a escola é central na formação — ou deformação — de subjetividades. O que se cala, o que se permite, o que se ignora: tudo educa.
Na trama, nenhum professor ou gestor percebe as mudanças no comportamento de Jamie. Há um abismo entre os adultos da instituição e os alunos — um abismo que não se restringe à ficção. Em muitas escolas, os protocolos contra a violência de gênero são frágeis ou sequer existem. Quando uma aluna denuncia assédio, escuta que “foi só uma brincadeira”. Quando um garoto reproduz discurso misógino, a resposta institucional é o silêncio. E esse silêncio valida a violência.
A psicologia educacional é clara: adolescentes precisam de adultos que se posicionem. Não basta observar. O “não vi” ou “não sabia” não são justificativas aceitáveis quando se trata da dignidade e segurança de meninas em ambientes escolares.
Hoje, as escolas já enfrentam discursos misóginos que circulam por fóruns incels, páginas da “machosfera” e redes digitais. O que antes era subterrâneo, agora é escancarado. Piadas sobre feminismo, deslegitimação de meninas que tiram boas notas, naturalização da dominação masculina — tudo isso já faz parte do vocabulário de muitos estudantes.
Mas isso não é só “falta de educação”. É reflexo de algo mais profundo: a radicalização de meninos influenciados por conteúdos digitais, como reação à frustração afetiva e à sensação de inadequação. E a escola se torna palco e combustível dessa radicalização — pela ausência de diálogo, de políticas preventivas e de ações diante dos conflitos de gênero.
Boa parte dos educadores não foi formada para lidar com violências simbólicas, afetivas ou culturais. Foram preparados para ensinar conteúdos, mas não para reconhecer sinais de sofrimento psíquico, dinâmicas de gênero ou discursos de ódio. Isso precisa mudar.
Não se trata de transformar professores em psicólogos, mas de capacitá-los para reconhecer que a violência de gênero não começa com o tapa — começa com o discurso. E silenciar diante do discurso é permitir que o tapa aconteça.
O papel dos pares: alunos que reforçam, colegas que reproduzem
Jamie não mata Katie sozinho. Antes da faca, vieram os risos, os memes, os grupos de WhatsApp, os discursos que deslegitimam a vítima. A violência de gênero, na adolescência, muitas vezes é coletiva — mesmo quando o ato final parece individual.
A série mostra isso com precisão: em vez de acolher a dor da família da vítima, a comunidade questiona, relativiza e espalha teorias conspiratórias. Isso não é apenas dramaturgia. Nas redes sociais, há páginas inteiras culpando vítimas de feminicídio. Nos pátios escolares, há risadas após relatos de abuso. Em grupos de adolescentes, circulam vídeos que jamais deveriam ter sido gravados.
A cultura do estupro e da misoginia também se constrói com espectadores — e esses espectadores são moldados, legitimados e fortalecidos quando a escola escolhe não se posicionar.
Direcionamentos possíveis
- Protocolos institucionais claros
Toda escola precisa de diretrizes públicas, acessíveis e eficazes para lidar com assédio, bullying e discriminação de gênero. - Educação sexual crítica e emancipadora
Não basta ensinar reprodução. É essencial falar de gênero, consentimento, desejo, afetos e redes de cuidado — e isso deve estar no currículo. - Formação continuada para professores
Docentes devem ser preparados para identificar sinais de sofrimento psíquico, discursos de ódio e violências simbólicas. - Grêmios e coletivos estudantis
Estudantes devem ter espaços de fala e escuta, onde possam construir coletivamente uma cultura de respeito e não-violência. - Mediação escolar com profissionais de Psicologia
Psicólogos devem estar presentes nas escolas de forma constante, e não apenas em situações de crise. Prevenção é sempre mais eficaz que reação.
Adolescência não é só uma série sobre um crime. É uma denúncia sobre a ausência de ação. Mostra como escolas, famílias e comunidades falham quando ignoram os pequenos sinais que, somados, levam à tragédia.
A violência de gênero nas escolas não é um acidente. É um produto social — e pode ser enfrentado, desde que deixemos de tratá-la como exceção.
A escola é um dos raros espaços onde meninos e meninas convivem diariamente. Se não for ali o ponto de virada, onde será? Que ela forme não só bons profissionais, mas pessoas capazes de respeitar, sentir e conviver com dignidade.
Até a próxima.