GABRIEL GAMA
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)
Uma disputa no Congresso pelo Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, envolve a Igreja Católica e o governo federal e ameaça a preservação ambiental do Parque Nacional da Tijuca. A afirmação é do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), responsável pela unidade de conservação federal onde fica a estátua. O parque é o mais visitado do país e líder em arrecadação.
O órgão vê com preocupação a tramitação de três projetos de lei na Câmara e no Senado que alteram a propriedade da área do monumento. O assunto une o espectro político: as propostas foram apresentadas por políticos do PT, PL e PSD.
O Santuário Cristo Redentor, que realiza missas na capela sob a estátua e seria beneficiado com as medidas, diz não ter relação com os projetos de lei. Em nota, a entidade afirma que “os projetos refletem uma legítima preocupação de parlamentares com os desafios enfrentados na governança da área do Cristo”.
Um dos projetos exclui a estátua dos limites do parque da Tijuca. Outra proposta passa a administração do entorno do monumento para a Mitra Arquiepiscopal do Rio de Janeiro, responsável pelos templos católicos. E uma terceira medida transfere a gestão de toda a unidade de conservação para a Prefeitura do Rio de Janeiro.
“Essas propostas significam um retrocesso ambiental e um prejuízo ao patrimônio público brasileiro”, diz Mauro Pires, presidente do ICMBio.
“Defendemos a integridade do parque, porque ele tem um papel de conservação que não é exclusivamente ambiental, mas também é cultural, religioso e espiritual”, afirma Pires.
Na última terça-feira (22), o padre Omar Raposo, reitor do santuário, participou de sessão na Câmara em homenagem à peregrinação da cruz da primeira missa realizada no Brasil. Raposo se encontrou com o presidente Lula (PT) e disse que espera uma união entre os poderes para que a área do Cristo seja removida do parque da Tijuca.
“Há pouco deixei com o presidente Lula esse pedido, para que tudo isso seja feito em nome do país, em memória da nossa história fabulosa em torno da cruz e em homenagem ao papa [Francisco, morto no dia 21]”, afirmou no plenário.
Segundo reportagem de O Eco, a Mitra também procurou o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) para destravar a medida.
Hoje, a área do Cristo pertence à União e a administração cabe ao ICMBio. Em 2022, no governo Bolsonaro (PL), o Ministério do Meio Ambiente e a Arquidiocese do Rio de Janeiro assinaram um acordo de convivência. O documento definiu que a gestão do platô onde fica a estátua deve ser compartilhada entre o ICMBio e a Igreja.
O projeto de lei 3.490/2024, apresentado pelos senadores Carlos Portinho, Flávio Bolsonaro e Romário (os três do PL-RJ), exclui o entorno do Cristo do parque da Tijuca. A proposta foi aprovada na Comissão de Desenvolvimento Regional e Turismo e aguarda definição de relator na Comissão de Meio Ambiente.
A medida busca permitir que a Mitra tenha “liberdade para administrar o complexo sem as amarras burocráticas”, segundo o texto.
A reportagem procurou os senadores por e-mail e telefone. Somente Portinho retornou até a publicação. Ele nega a possibilidade de danos ambientais caso os limites do parque da Tijuca sejam alterados e cita como exemplo a mudança na delimitação do Parque Nacional da Serra dos Órgãos, também no Rio de Janeiro.
A alteração dos limites do parque da Serra dos Órgãos entrou em vigor em 2022 e retirou da unidade de conservação áreas ocupadas pela agricultura.
“Uma coisa é a preservação do parque, outra coisa é o acesso ao Cristo Redentor. É um patrimônio da Igreja Católica, feito para ela, e que deve ser preservado pela Mitra”, afirma Portinho.
O prefeito de Maricá e ex-deputado federal Washington Quaquá (PT-RJ) propôs na Câmara o projeto 3.208/2024, que transfere a área do estacionamento até o platô do Cristo para a Mitra. A proposta aguarda relatoria na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável.
“A lei ambiental brasileira é importante para preservar a biodiversidade, mas é exagerada em alguns casos. O que estou propondo é que se devolva o Cristo aos seus verdadeiros donos, a Igreja e seus fiéis”, afirma Quaquá.
Três dias após a morte de um turista nas escadarias que levam ao Cristo, o deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ) apresentou o projeto de lei 1.142/2025. A medida transfere a gestão de todo o parque da Tijuca para a Prefeitura do Rio.
“A arquidiocese foi consultada e apoiou a proposta de municipalização da gestão, num movimento de busca por celeridade na solução das demandas”, diz Paulo. O parlamentar afirma que a prefeitura continuaria obrigada a seguir as normas do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza.
Segundo Mauro Pires, presidente do ICMBio, a preocupação do instituto é garantir que o patrimônio ambiental seja preservado nas unidades de conservação e esteja disponível para as próximas gerações.
“A mata atlântica está entre os biomas mais ameaçados do Brasil e a mudança do clima deixa claro que as florestas têm um papel essencial na conservação”, afirma Pires. Ele cita o papel do bioma para a regulação climática da capital fluminense.
A vegetação do parque da Tijuca é fruto de um reflorestamento que se iniciou no século 19, durante o reinado de dom Pedro 2º, conta Viviane Lasmar, chefe da unidade de conservação. A área havia sido degradada por fazendas de café.
Na visão de Lasmar, o Cristo deve continuar dentro dos limites do parque. “Existe a preocupação de perder o controle mínimo que o ICMBio faz. Nós regulamos o trânsito de veículos para evitar atropelamentos de animais, por exemplo. Como vai ficar isso?”, diz.
A realização de eventos também pode afetar a fauna, em especial os animais com hábitos noturnos. Luzes e barulhos interferem ainda nas atividades de pássaros e insetos, segundo Lasmar.
O ICMBio desenvolve um programa de reintrodução de espécies no parque, como o jabuti-tinga e macaco bugio, e há o temor de que mudanças na gestão possam afetar as atividades e a visitação.
“Pode abrir uma porteira para interesses privados e comerciais, restringindo o acesso da população e da sociedade nas unidades de conservação”, diz a chefe do parque.
Eventos como casamentos, festas ou missas no platô do Cristo só podem acontecer fora do horário de visitação (das 7h às 19h). “Já recebemos pedidos para fechar o parque mais cedo para casamentos de famosos e nós negamos, porque a visitação pública é a prioridade para o local”, afirma Lasmar.
O Santuário Cristo Redentor diz que as atividades religiosas realizadas no local não podem ser controladas por órgãos que “não tenham competência sobre o exercício da fé”.
“Trata-se do pleno uso de um solo sagrado, que não está sob a gestão do Estado”, afirma o santuário.
A estátua e o parque da Tijuca são tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O Cristo também faz parte da paisagem nomeada como patrimônio mundial da humanidade pela Unesco, agência da ONU para a educação, a ciência e a cultura.
Em nota, o Iphan diz que qualquer intervenção ou evento que cause impacto no bem tombado deve receber autorização do órgão. Como a Folha de S.Paulo mostrou em reportagem, o instituto apontou risco de incêndio florestal nos refletores da estátua.
Segundo o Iphan, mudanças na posse da área do Cristo não alteram, porém, a condição do tombamento.
A reportagem questionou a Unesco se as mudanças poderiam afetar a nomeação da estátua como patrimônio da humanidade. A agência afirma que mantém um diálogo com as autoridades locais e busca soluções antes de retirar um bem da lista de patrimônio mundial.