A amizade entre o papa Francisco e a freira que quebrou protocolo para orar diante do caixão do pontífice

A freira reclamou com Bergoglio por ele não ter comparecido, em 2005, ao funeral de vítimas do regime militar argentino — entre as quais, estava a tia dela. Foi o início de uma bela amizade. Geneviève-Josèphe Jeanningros. Até quarta-feira (23/4), o nome desta freira francesa de 82 anos era conhecido apenas por algumas pessoas.
No entanto, após sua decisão de permanecer imóvel em frente ao caixão do papa Francisco por alguns minutos, isso mudou.
A imagem da pequena freira com seu véu azul e mochila verde nas costas, rezando e chorando diante do caixão do pontífice argentino, enquanto os cardeais passavam, comoveu o mundo.
O protocolo do Vaticano para a câmara-ardente do papa proíbe expressamente parar diante do seu corpo, que está localizado aos pés do altar principal da Basílica de São Pedro. Qualquer um que tente violar esta regra será obrigado pela equipe de segurança a cumpri-la.
Por que, então, isso não aconteceu com a religiosa? Por causa da forte relação de amizade entre ela e o papa.
O relacionamento deles, no entanto, não começou bem, de acordo com a própria Jeanningros, e aqueles que a conhecem.
A carta que deu início a tudo
“Ela estava chateada, muito chateada com Bergoglio, e enviou uma carta a ele dizendo isso”, explica à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, Emily Stout, colega de Jeanningros na congregação das Irmãzinhas de Jesus, ordem à qual a agora conhecida freira pertence.
O motivo? “A atuação dele no caso dos desaparecidos durante a última ditadura militar na Argentina”, acrescenta a freira americana da sede da Fraternidade Geral das Irmãzinhas de Jesus, localizada a poucos passos da histórica Abadia de Tre Fontane em Roma, onde, segundo a tradição, o apóstolo Paulo foi decapitado em 67 d.C..
Jeanningros é sobrinha da religiosa francesa Lèonie Duquet, que em dezembro de 1977 foi presa pelo regime militar argentino e desapareceu junto a outras 12 pessoas, incluindo outra freira francesa chamada Alice Domon. Tudo isso por seu ativismo pelos direitos humanos.
As autoridades militares tentaram simular que a ação foi perpetrada pela guerrilha Montoneros. No entanto, foram os militares que colocaram os prisioneiros em um avião e os jogaram no mar.
O corpo de Duquet só foi encontrado e identificado em 2005, quando ela foi enterrada na Igreja da Santa Cruz, em Buenos Aires, onde havia sido detida. O gesto não satisfez, no entanto, sua sobrinha.
“O enterro me deixou chateada”, admitiu Jeanningros em um vídeo compartilhado por suas companheiras da ordem.
Na sequência, ela explicou: “A igreja estava lotada, mas não havia um único representante do bispado (…) Eu não podia aceitar isso. Não queria que minha tia estivesse ali.”
“Em outubro de 2005, Bergoglio (então arcebispo de Buenos Aires) veio a Roma para o Sínodo dos bispos, e eu escrevi a ele reclamando, e deixei meu número de telefone. Ele me ligou, e eu me perguntei: ‘O que você fez?'”, acrescentou a religiosa.
“Ele me disse: ‘Obrigada, minha irmã, por me enviar esta carta, mas eu queria te dizer que não sou alheio a esta situação, e que permiti que eles (os desaparecidos) fossem enterrados ao redor da igreja'”, ela contou.
Mas a freira não ficou satisfeita, e insistiu na reclamação.
“Eu respondi: ‘Isso não basta. Você deveria ter estado lá (no funeral) pelas pessoas que sofreram tanto. A Igreja deveria estar presente, mas não estava.'” Então ele permaneceu em silêncio por um bom tempo e, segundo ela, respondeu: “Obrigada, minha irmã, é assim que devemos falar uns com os outros, como irmãos e irmãs”.
Oito anos depois, após a histórica renúncia de Bento 16, Bergoglio foi eleito o novo chefe da Igreja Católica, algo que assustou a freira, como ela confessou no vídeo.
No entanto, um mês após sua eleição, a irmã descobriu que não havia nada a temer.
“Em 20 de abril de 2013, fomos convidados para uma missa na (residência) Santa Marta (onde o pontífice argentino viveu e morreu); depois da missa, o papa nos recebeu e me deu um beijo”, contou a religiosa.
Sempre presente
“Como eu gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!”. Quando Jeanningros ouviu Bergoglio pronunciar estas palavras alguns dias após sua eleição, ela concluiu que era o homem certo para sentar no trono de São Pedro.
“Ali comecei a chorar, porque foi por isso que minha tia morreu, pelos pobres. E eu disse a mim mesma: finalmente alguma coisa vai mudar”, recordou ela.
Com o passar do tempo, a relação entre o agora falecido papa e a freira só se tornou mais próxima.
“Ela comparecia a quase todas as audiências gerais de quarta-feira, e fazia questão de conseguir ingresso como qualquer outra pessoa, embora certamente se tivesse ligado para o Vaticano, eles teriam dado a ela sem nenhum problema”, explica Stout.
O papa também retribuiu as visitas da freira. Em 2015 e no fim de 2024, ele foi ao Luna Park, o parque de diversões onde a freira vive em um trailer junto aos integrantes da caravana de trabalhadores do parque, localizado na cidade de Ostia, a cerca de 30 quilômetros a sudoeste de Roma.
A freira contou que o pontífice ficou surpreso com a simplicidade do seu modo de vida e, em particular, com a localização de sua capela.
“Não pensei que tivessem o Santíssimo no trailer”, disse o pontífice, de acordo com o relato da irmã.
Durante a pandemia de covid-19, a freira aproveitou seu contato com Bergoglio para pedir ajuda na forma de alimentos e suprimentos para os trabalhadores do parque e também para um grupo de pessoas transexuais que vivem na área.
A congregação esclareceu, no entanto, que o trabalho de Jeanningros com esse grupo começou nos últimos anos.
Uma congregação incomum
A exposição de Jeanningros na mídia também colocou em evidência a congregação à qual ela pertence: as Irmãzinhas de Jesus, uma ordem fundada em 1939 pela francesa Magdeleine Hutin (1898-1989), mais conhecida como Madalena de Jesus.
A ordem religiosa é diferente de outras que existem dentro da Igreja Católica. “No início, era uma comunidade dedicada exclusivamente aos nômades e muçulmanos”, diz seu site.
Anos depois, “a irmãzinha Madalena recebeu a certeza interior de que a Fraternidade era convocada a se abrir para o mundo inteiro, mantendo uma amizade especial com os fiéis do Islã”, segue o texto de apresentação.
“Nossa fundadora se inspirou em Charles de Foucauld (1858-1916), um religioso francês que no século 19 foi ao Saara para viver com os muçulmanos, sem a intenção de convertê-los — mas, sim, de ensiná-los que suas vidas eram valiosas”, explica a irmã Stout.
De Foucauld foi canonizado por Francisco em maio de 2022, quase 17 anos depois de ser beatificado.
Stout diz que a congregação não tem como objetivo buscar novas almas.
“Queremos que os muçulmanos vivam sua própria fé e sua própria tradição religiosa, porque a Igreja acredita que viver profundamente a fé, seja ela qual for, é a salvação”, afirma.
“Nosso apostolado é de amizade. Queremos vivenciar o que nossos vizinhos vivenciam e compartilhar seu destino, sem impor nada.”
Ela também afirmou que elas não administram escolas, hospitais, clínicas ambulatoriais ou casas de repouso.
“Trabalhamos lado a lado com as pessoas. Fazemos trabalhos de limpeza em fábricas ou em parques de diversões, como a irmã Jeanningros, porque acreditamos que esta é a melhor maneira de sermos acessíveis, e de levar a Igreja às pessoas que nunca a frequentam, e que até foram prejudicadas pela Igreja”, observa.
Outro aspecto que chama a atenção é que elas vivem integradas nas áreas dos 48 países onde estão presentes.
“Vivemos em pequenas comunidades, de três ou quatro pessoas, que chamamos de fraternidades, que significa irmandade. Moramos em apartamentos ou, como a irmã Jeanningros, em um trailer ao lado dos trabalhadores do parque. Ela tem até uma barraca onde vende produtos”, conta a irmã Clémence, que também é membro da ordem, à BBC News Mundo.
“Gostamos de manter a discrição porque isso nos oferece liberdade e criatividade”, afirma Stout.
“O poder e influência são prejudiciais para o evangelho e representam uma ameaça à sua mensagem.”
A religiosa atribui este perfil discreto ao fato de Jeanningros ter optado por recusar o convite da BBC News Mundo para uma breve entrevista.
“Há algo muito íntimo na amizade, e quando você conhece e respeita profundamente alguém, não quer expor isso”, explica.
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