Por Henrique Fregonasse e Maria Clara Batista
Ao subir a tesourinha em direção à quadra 309 da Asa Norte, é possível encontrar uma faixa colada no viaduto, logo acima da passagem. “Brasília goza em silêncio”, lê-se, em letras garrafais. Trata-se de um dos lambe-lambes — colagens feitas em papel — do projeto “Cada caminho é um poema”, realizado pelo Coletivo Transverso.
“Essas frases são autorais e fazem parte do nosso repertório poético. ‘Brasília goza em silêncio’ é uma provocação lírica que fala do prazer contido, dos afetos subterrâneos, da cidade que vive intensamente apesar das estruturas que a silenciam. São frases que colocam Brasília como corpo, como enigma, como desejo — e que convidam quem passa a sentir a cidade com mais escuta e presença”, explica a multiartista Patrícia Del Rey, que foi uma das fundadoras do Transverso em 2011, a partir do desejo de realizar intervenções poéticas no espaço público cotidiano.
Ela conta que o lambe-lambe despertou o interesse do grupo desde o princípio, por se tratar de uma linguagem de “guerrilha afetiva” — que busca criar uma conexão emocional forte e duradoura com o público — direta, acessível, potente e efêmera.
“É uma forma de imprimir poesia no concreto, de marcar o tempo da cidade com frases que resistem e desaparecem. Ele entrou no nosso processo criativo como extensão da palavra no corpo da cidade — uma escrita que se cola no mundo”, ressalta.
Foto: Divulgação – Coletivo Transverso
Questionada sobre a valorização dos lambe-lambes, uma vez que não costumam ser assinadas e estão à mercê das intempéries da natureza, Patrícia esclarece que a percepção de valor dessas obras está na coletividade e na identificação de quem observa.
“A nossa assinatura é o gesto coletivo. Muitas vezes não assinamos justamente para deixar que a frase pertença a quem lê. A valorização vem pela ressonância: quando um lambe toca alguém, muda um percurso, inicia uma conversa, ele já cumpriu seu papel. A arte urbana não é sobre o nome de quem fez, mas sobre o que ela move”, destaca.
A artista conta que algumas das frases expostas nos lambes pelo Transverso já os acompanham há anos e seguem ressoando nas ruas junto aos brasilienses, sendo reescritas em cadernos, copos e muros de outras cidades.
“‘Amanhã a gente muda tudo’, ‘Em caso de dor, dance’, ‘Aqui as flores nascem do concreto’, ‘A vida é um emaranhado de nós’. Cada uma carrega um gesto poético de resistência, ternura ou provocação. São frases que colam no concreto, mas também colam na memória de quem passa”.
Uma delas, “Amanhã a gente muda tudo”, foi uma das ações que mais marcou a artista, durante sua colagem no viaduto da tesourinha da quadra 216 da Asa Norte, pouco antes da cidade ser coberta de fumaça em decorrência dos incêndios do Parque Nacional de Brasília, em 2024.
”A cidade amanheceu mergulhada em névoa densa, consequência dos incêndios, e uma amiga registrou a imagem do lambe-lambe entre a fuligem. Aquela imagem me atravessou — era como se o poema dialogasse diretamente com o colapso. A frase, colada no concreto, parecia fazer um chamado urgente diante do avanço do capitalismo tardio, da destruição do Cerrado, da crise ambiental. Aquela névoa era um alerta — e a poesia, ali, serviu como sinal”, relata.
Foto: Divulgação – Coletivo Transverso
“É por isso que acreditamos tanto no poder da intervenção urbana, porque ela é gesto presente, corpo político e urgência lírica. Um modo de dizer que precisamos agir agora para ainda haver futuro”.
Patrícia enxerga as intervenções urbanas como uma arte “do encontro”, que não pede permissão e que acontece no intervalo entre o olhar distraído e o desejo de se afetar. “É linguagem viva, em diálogo direto com o tempo e o território. Ela rompe cercas simbólicas, propõe deslocamentos e inscreve poesia onde só havia concreto”.
Para Patrícia, essas intervenções são especialmente importantes em uma cidade como Brasília, em que a desigualdade estrutural é reforçada pelo silêncio, pois permitem abrir espaços pelos quais as vozes da diversidade podem fluir.
“Elas são fundamentais para trazer diversidade de narrativas, para devolver o espaço público ao sensível. Em um território tão simbólico como o DF, intervir é também disputar memória, pertencimento e futuro”, defende.
Foto: Divulgação – Coletivo Transverso
Concreto que fala, Quadradinho que sente
O Coletivo Transverso não inventou o lambe-lambe e nem nenhuma outra forma de intervenção urbana. Contudo, o trabalho do grupo não só atuou para a disseminação dessas obras no Distrito Federal, como também em várias regiões do país, por meio de exposições, cursos, oficinas e workshops.
Foto: Tati Sabadini – Arquivo pessoal
Natural do Rio de Janeiro (RJ) e brasiliense de coração há 15 anos, a escritora e artista Tati Sabadini criou projetos que dialogam com a capital, após descobrir o lambe-lambe em 2019, durante uma oficina com o Coletivo Transverso.
“Aprendi a técnica e me encantei pela ideia de levar mensagem para quem precisa ler, sem escolher o leitor”, conta.
Durante a pandemia, ao lançar “Poemas que eu não queria escrever sobre você” (2021), Tati começou a colar trechos do livro pela cidade, como forma de divulgar sua obra e atrair mais interessados. Desde então, entendeu que o desapego é uma boa experiência.
“É uma arte que exige desapego. Você coloca a mensagem na rua e, no dia seguinte, pode já ter sumido — as pessoas arrancam, cobrem ou apagam. Talvez alguém leia, talvez não. Você perde o controle sobre a palavra, e o poema deixa de ser seu quando vai para o mundo. Foi uma boa experiência aprender esse desapego”.
Foto: Tati Sabadini – Arquivo pessoal
Consequentemente, a interação com a arte é uma das riquezas do lambe-lambe.
“As pessoas também escrevem mensagens por cima. E isso é o mais legal: esse desapego do que você criou virando um convite à interação. Um leitor passa, rabisca, responde, rasga parte do trabalho… É isso. A obra não é mais sua — é da rua, da cidade. Vira uma coisa viva que outros modificam” explica a artista.
Foto: Tati Sabadini – Arquivo pessoal
Porém, o brutal da cidade não é modificado por completo. Infelizmente, o medo ainda dificulta a expressão artística de mulheres no DF. Tati relata que não pode sair sozinha à noite para colar. Apesar da segurança ser uma preocupação constante, isso não a impede de continuar, mas inspirou a criar uma rede de apoio com outras mulheres.
“Geralmente antes eu saía com um amigo, agora eu saio sempre com outras mulheres, o que faz ser um momento nosso”.
Assim como Patrícia, Tati também vê a importância dos lambes no processo de ocupação da cidade por pessoas de realidades dissidentes, de se fazerem pertencentes a Brasília.
Nascida em terras fluminenses, ela, como tantos outros brasilienses moradores das demais Regiões Administrativas do DF têm, nas colagens, uma oportunidade de se fazer ouvir, de furar as bolhas, de mostrar que são tão donos de Brasília como qualquer outro.
“Nasci em Resende (RJ), mas morei pouco lá também, então como sou uma pessoa meio ‘sem raiz’, Brasília se tornou essa raiz para mim, e o lambe-lambe se tornou parte, também, de eu fincar o pé na cidade e fazê-la, de alguma forma, pertencer a mim, uma forma de ocupar a cidade de um jeito diferente”, explica.
Foto: Maria Clara Batista
Intervenção polissêmica
A professora Maria Fernanda Derntl, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de Brasília (UnB), líder do grupo de pesquisa Capital e Periferia, defende que a ideia de “intervenção urbana” é uma com múltiplos significados.
“Mas eu entendo que a gente vem falando dessa possibilidade de ver Brasília não como uma cidade cujos sentidos já são, assim, pré-determinados. Uma cidade imutável. Então, essa ideia de ocupar os espaços e fazer pequenas transformações neles é interessante porque você não precisa mudar radicalmente o traçado da cidade. Você pode aproveitar a cidade que você já tem de novas formas”.
O grupo de pesquisa Capital e Periferia se dedica a estudar a história de Brasília, as representações sociais da cidade e o modo como as pessoas vivenciam a cidade e dão novos sentidos a ela, segundo explica a professora de arquitetura.
“E uma das maneiras de vivenciar a cidade e dar novos significados aos espaços da cidade é ocupar esses espaços”, destaca Derntl.
Para a professora, porém, esse tipo de intervenção é controverso por natureza e nem sempre é bem recebido por uma grande parcela da sociedade.
“Sem dúvida, eles são uma manifestação muito significativa que merece que a gente olhe com interesse para ela. Tem temas da vivência urbana que se mostram ali, tem problemas da cidade que se mostram ali, tem novas formas artísticas, mas não tem uma resposta simples e única porque a cidade é muito diversificada”, argumenta.
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira