Brasil foi destino da 1ª viagem internacional de Francisco como papa; entenda relação com o país

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ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Você pensa que cachaça é água? Papa Francisco não pensava, não. Mas conhecia e até cantarolava em público a marchinha carnavalesca que celebra a paixão nacional pela pinga.

Em muitos sentidos, o pontífice morto nesta segunda-feira (21), aos 88 anos, aproximou Brasil e Vaticano como nunca antes. Não só nos gracejos, mas em ações práticas que colocaram a nação vizinha à Argentina natal sob os holofotes da Igreja Católica em diversos momentos.

O Rio de Janeiro o recebeu em sua primeira viagem ao exterior após assumir o lugar de Bento 16 (1927-2022), o primeiro papa a renunciar ao cargo em quase 600 anos. Ele veio para a 28ª Jornada Mundial da Juventude, em julho de 2013, um evento marcado no calendário papal antes mesmo de o antecessor sair de cena.

Francisco, então com 76 anos, se mostrou animado com a oportunidade, como ficou evidente ao discursar ao lado da chefe do Executivo brasileiro na ocasião, Dilma Rousseff, a quem chamou de presidenta. “Quis Deus na sua amorosa providência que a primeira viagem internacional do meu pontificado me consentisse voltar à amada América Latina, precisamente ao Brasil, nação que se gloria de seus sólidos laços com a Sé Apostólica.”

Os laços com terras verde-amarelas eram antigos. Ainda como cardeal, Jorge Mario Bergoglio foi um dos protagonistas da Conferência de Aparecida, em 2007. Bispos latino-americanos travaram, na época, uma disputa política entre um modelo de Igreja mais próximo do pensamento conservador de Bento 16 e outro, de tradição latino-americana.

Francisco teve “papel essencial” no documento produzido ali, lembra o vaticanista Filipe Domingues, professor na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. O texto final valoriza muito do que o argentino depois sublinhou em seu papado: uma igreja que precisava gastar sola de sapato para ajudar os marginalizados e mais atenta à religiosidade popular.

Um gaúcho ajudou a escolher Francisco, o santo que dedicava sua vida aos mais necessitados, como seu nome papal. O velho amigo dom Cláudio Hummes (1934-2022), arcebispo emérito de São Paulo, o abraçou e beijou quando ele saiu vitorioso do conclave que elegeu o sucessor do pontífice renunciante. Então lhe disse: “Não se esqueça dos pobres”.

Hoje a alta hierarquia da Santa Sé comporta alguns brasileiros. Dom Ilson de Jesus Montanari está num departamento que supervisiona e orienta bispos, o que o credencia a ser secretário de um conclave para escolher o sucessor de Francisco. Monsenhor Marcos Pavan virou em 2020 o maestro da Capela Sistina.

O cardeal João Braz de Aviz foi prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica no Vaticano, até ser substituído,

em 2025, pela freira italiana Simona Brambilla –a primeira mulher no cargo. Aviz havia chegado ali em 2011, portanto antes de Francisco, e tinha acesso livre a ele
Em 2022, Francisco deu a dois outros brasileiros o título de cardeal: dom Paulo Cezar Costa e dom Leonardo Steiner. A decisão pelo último, arcebispo de Manaus, reforça o zelo ambiental do papa que já alertou para a humanidade não transformar o jardim que recebeu de Deus num deserto para seus filhos.

Dois anos depois, foi a vez de outro aliado na Igreja da agenda verde, dom Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre, virar cardeal.
Seis anos depois de ser alçado à liderança da Cúria Romana, o papa promoveu o Sínodo da Amazônia, encontro inédito na Igreja para debater temas ambientais e indígenas.
Embora agendada dois anos antes, a assembleia calhou de coincidir com o primeiro ano na Presidência de Jair Bolsonaro (PL), que não ficou nada feliz com a iniciativa católica. “Tem muita influência política lá, sim”, o político disse à época. O sínodo aconteceu com meses de distância do quebra-pau diplomático entre Bolsonaro e o presidente francês, Emmanuel Macron, furioso com o aumento de queimadas na região amazônica.

No mesmo 2019, o pontífice criticou o fogo no bioma, “ateado por interesses que destroem”, e disse que a Amazônia precisa mesmo é “do fogo do amor de Deus”.
Francisco entrou mais de uma vez na mira do bolsonarismo, como ao pedir que Nossa Senhora Aparecida livrasse o povo brasileiro “do ódio, da intolerância e da violência”. A súplica, feita a dias do segundo turno em 2022, foi recebida como indireta por apoiadores do presidente que pleiteava a reeleição.

Bolsonaro perdeu o pleito para Lula (PT), e avolumaram-se, nos prados bolsonaristas, suspeitas de que o papa era amigável demais com o petista.

Os dois se conheceram desde que Francisco era Bergoglio, o arcebispo de Buenos Aires, e o pontífice de fato deu mais de uma demonstração pública de afeto ao atual presidente.

Em 2023, ao site argentino Perfil ele disse que Lula “nasce daquela religiosidade que se nutria na família,” uma “religiosidade popular elementar”.

Quando o petista estava preso, o argentino lhe mandou uma carta lamentando as “duras provas” pelas quais passava, com destaque para as perdas da esposa, Marisa Letícia, de um irmão e de um neto de 7 anos. Mais adiante, Francisco afirmou que a condenação de Lula pela Lava Jato, depois anulada, foi injusta.

O vaticanista Domingues diz que não houve necessariamente uma amizade próxima entre a dupla, mas a sintonia de pensamento ficou patente na reunião que eles tiveram no Vaticano.

País que nas últimas décadas vem perdendo católicos aos borbotões, substituídos por evangélicos ou pessoas sem filiação religiosa, o Brasil encontrou em Francisco uma familiaridade que não teria como se repetir com os papas europeus que o precederam.

Daí o pontífice, torcedor declarado do San Lorenzo, já ter feito troça com a rixa histórica entre a Argentina e o Brasil no futebol –certa vez, perguntou a um brasileiro quem, afinal, era melhor, Pelé ou Maradona. Ou ter cantado a marchinha “Cachaça Não É Água” ao identificar que seu interlocutor era da nação vizinha à sua.

Em 2013, quando visitou uma favela carioca com seu papamóvel, brincou: “Queria bater em cada porta, dizer ‘bom dia’, pedir um copo de água fresca, beber um cafezinho –e não um copo de cachaça!”.

Mas, para esse brinde se consolidar, provavelmente Francisco optaria por outra bebida. Na biografia “A Vida de Francisco”, Evangelina Himitian conta que, quando era bispo, ele harmonizava as refeições na cúria portenha com meia taça de vinho.

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