Muito além do déficit comercial

Na medida em que avança a queda de braço, fica evidente que há mais do que interesses comerciais por trás da disputa entre Estados Unidos e China Rawpixel

Quanto mais barulho é produzido pelo bafafá aparentemente irracional em torno das tarifas de importação entre as duas maiores potências econômicas do mundo, mais fica claro que o déficit comercial multimilionário dos Estados Unidos em seu comércio com a China não é a única, nem parece ser a principal razão que move Donald Trump.

Certo ou errado, o presidente parece convencido de que o gigante oriental representa um risco cada vez mais sério para seu país — e se mostra cada vez mais disposto a enfrentá-lo.  

Muito além da supremacia comercial da China, Trump tem se queixado com frequência da ameaça à segurança e até mesmo do risco de perda da superioridade militar por seu país caso não tenha acesso a matérias primas cada vez mais essenciais para as indústrias de defesa, de tecnologia da informação e muitas outras.

Em nome do acesso aos minerais estratégicos, ele fala em tomar posse da Groenlândia e condiciona a ajuda militar à Ucrânia ao acesso às jazidas desses minerais. Hoje, a produção mundial desses elementos está sob domínio da China. 

Por esse ponto de vista, a questão comercial, por mais importante que seja, parece secundária entre as motivações de Trump. Ou melhor, é claro que o presidente se preocupa com o déficit comercial de US$ 295 bilhões registrado no ano passado, quando as trocas entre os dois países atingiram US$ 650 bilhões.

Também é óbvio que ele fala com convicção quando menciona a necessidade de conter o avanço dos produtos ”made in China” sobre o mercado norte-americano.  

Mas Trump, como já foi dito neste espaço na semana passada, também promete não medir esforços para desestimular a expansão da presença chinesa sobre localidades e atividades que, embora não representem uma ameaça direta para a segurança dos Estados Unidos, reforçam a posição chinesa pelo mundo.

Ou seja, a guerra comercial que hoje ameaça virar de pernas para o ar as relações entre os dois países tem, na verdade, uma motivação estratégica.   

Isso significa o seguinte: se a China se limitasse a abrigar fábricas altamente produtivas e capazes de abastecer o mundo inteiro e de inundar o mercado norte-americano com seus produtos manufaturados, a reação de Trump talvez não fosse tão inflamada quanto tem sido.

Acontece, porém, que a China às vezes dá a impressão de querer muito mais do que a prosperidade econômica. E, assim, o apetite desmedido do capital chinês por construir e administrar portos, aeroportos, rodovias, e outros ativos estratégicos em todos os cantos do mundo — algo que parecia não preocupar o governo anterior, de Joe Biden — tem sido visto com preocupação crescente pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos.  

Mais uma vez, cabe aqui um alerta: se a preocupação do presidente faz algum sentido ou se não passa de uma espécie de paranoia em relação a um problema que, visto com o devido cuidado, pode não ser tão grave quanto Trump supõe, é algo para ser debatido em outra ocasião.

Para confirmar qualquer hipótese em relação a esse risco, seria necessário construir argumentos a partir de dados e de informações mais precisas do que as que estão disponíveis no momento.  

Da mesma forma e na mesma medida, no entanto, ninguém tem o direito de negar que o presidente pode ter razão ao questionar o movimento expansionista chinês. E de pôr em dúvida as intenções pacíficas que há por trás do aumento da presença da potência oriental pela África e pela América Latina.   

Terras raras

Na semana passada, no mesmo documento em que reconheceu que algumas tarifas de importação praticadas sobre as importações chinesas alcançam absurdos 245%, a Casa Branca mencionou a recente decisão do governo chinês de suspender a exportação de minerais estratégicos, como o antimônio, o gálio, o germânio e alguns elementos de terras raras. “A China vem usando seu domínio nas cadeias de suprimento como um instrumento de alavancagem geopolítica e econômica”, afirmou o comunicado do governo. 

A alegação parece menos absurda quando se olha com um pouco mais de atenção para esses minerais e para sua importância na indústria moderna.

Todos eles são relativamente abundantes na superfície terrestre. A questão é a dificuldade de se obtê-los. Para se conseguir um quilograma de cada um deles, é preciso revolver e processar toneladas e mais toneladas de terra, num processo de mineração minucioso, caro, trabalhoso e de alto impacto ambiental. 

“A dependência excessiva de minerais críticos e seus derivados pode comprometer as capacidades de defesa dos Estados Unidos da América, o desenvolvimento de infraestrutura e a inovação tecnológica”, diz o comunicado do governo norte-americano.  

Cada um dos minerais mencionados pela Casa Branca em seu comunicado tem um uso específico na indústria de defesa. O germânio é empregado na produção de semicondutores. O antimônio é aplicado na produção de ligas metálicas de alta resistência ao fogo. O gálio, por sua vez, é aplicado para a obtenção de ligas com baixo ponto de fusão. Já as terras raras são um conjunto de 17 minerais que dão origem a ligas maleáveis, de alta condutibilidade de energia ou que têm a capacidade de deformar sem se romper ou quebrar.  

Quem controla a produção ou o comércio desses elementos controla, também, a capacidade de produzir computadores, equipamentos médicos de última geração, redes de comunicação, veículos, armamentos, munições e uma série de outros artigos modernos, que seriam essenciais num confronto com inimigos poderosos ou mesmo no fluxo da informação e na capacidade de armazenamento de dados no mundo.  

Essa, portanto, é a questão: o que está em jogo não são apenas os saldos comerciais e o domínio do mercado consumidor de um dos países pelos produtos fornecidos pelo outro. O que está em jogo é o acesso a materiais estratégicos, cujo controle determinará quem ditará o ritmo do avanço tecnológico e liderará o mundo nos próximos anos.  

”Apenas” a inteligência   Essa, claro, seria a consequência extrema da guerra que está sendo travada pelos dois países neste momento.

Trump talvez tenha cometido o pecado capital de escolher como primeiro movimento nessa disputa o avanço excessivo das tarifas comerciais. Seu lance inicial manteve o mundo inteiro sob tensão e expôs o risco de provocar um desarranjo generalizado no comércio internacional — que está diante do risco de uma queda estrondosa. 

O presidente também exagerou ao incluir em sua cruzada países que, nas últimas décadas, sempre foram aliados dos Estados Unidos. Mas, com certeza, seu pecado mais evidente foi o de não calcular o impacto da resposta chinesa sobre o mercado de seu próprio país. 

Na sexta-feira da semana retrasada, no calor das discussões sobre o impacto que as tarifas de 145% impostas aos produtos chineses causariam no próprio mercado dos Estados Unidos — com o aumento da inflação e o encarecimento exagerado de produtos importados da potência oriental —, o presidente excluiu os dispositivos eletrônicos da lista de mercadorias sujeitas a essa taxa.

Com isso, smartphones, computadores pessoais, monitores e uma série de componentes poderiam continuar entrando no país sem o pagamento da tarifa.   A decisão teve um impacto direto sobre a Apple. A manutenção da tarifa de 145% tornaria proibitiva a venda, em sua terra de origem, dos artigos que levam a marca da empresa apontada por muita gente ao redor do planeta como o exemplo da superioridade dos produtos norte-americanos sobre artigos desenvolvidos e fabricados em países como a Coréia do Sul, Taiwan e a própria China.  

Acontece, porém, que cerca de 90% dos iPhones, o carro-chefe dos produtos da Apple, vendidos nos Estados Unidos e no mundo são montados em território chinês, utilizam componentes produzidos pela indústria chinesa a partir de metais estratégicos minerados em jazidas localizadas no território chinês.

De norte-americanos, portanto, os iPhones têm “apenas” (e note que o advérbio apenas está escrito entre aspas de todo tamanho!) a inteligência. 

É aí que se encontra o xis dessa questão. Os iPhones e tudo o que tem dentro deles (ou seja, os componentes, a disposição dos condutores, a bateria, o sistema operacional IOS) foram concebidos e desenvolvidos nos laboratórios da Apple na cidade de Cupertino, na Califórnia. Na hora de produzi-los e entregá-los ao mercado, porém, a tarefa foi entregue aos chineses — num arranjo que, pelo menos até a volta de Trump ao poder, sempre pareceu ótimo para os dois países.     Cartas na mesa

Este é apenas um exemplo. Outro, mais eloquente ainda, está na poderosa indústria aeronáutica e atingiu em cheio outro orgulho norte americano, a Boeing. Na semana passada, o governo chinês determinou que as três grandes companhias de aviação do país — a Air China, a China Easten e a China Sotthern — suspendessem as encomendas de um total de 179 unidades do modelo 737 que deveriam receber até o final de 2027.  

Assim que a notícia circulou, muita gente se apressou em apontar as vantagens que a decisão chinesa proporcionaria à europeia Airbus e até à brasileira Embraer.

Outra avaliação apressada foi a de que a estatal chinesa Comac ocuparia o espaço aberto pela ausência da empresa norte-americana com o seu modelo C-919 — uma aeronave criada para competir com o Boeing-737 e com o Airbus A-320. O jato comercial chinês fez o primeiro voo comercial há pouco menos de dois anos, em 28 de maio de maio de 2023. 

Não é tão simples assim. O Boeing 737 é um dos maiores casos de sucesso industrial do mundo e, desde que começou a voar, em 1967 — ou seja, 56 anos antes do concorrente chinês — já teve mais de 15 mil unidades vendidas a companhias aéreas do mundo inteiro. A empresa que o produz, ou seja, a Boeing, embora viva sempre em altos e baixos administrativos, é um exemplo de capacidade de logística e de excelência industrial.  

Cada modelo do 737 utiliza em sua montagem um total de 367 mil peças produzidas no mundo inteiro (inclusive no Brasil) e integradas nas fábricas da Boeing nos Estados Unidos.

Essas 367 mil peças são perfeitamente encaixadas umas às outras por igual número de porcas e parafusos e conectadas por uma rede de 58 quilômetros de cabos e de circuitos elétricos e eletrônicos.  

Por melhor que seja a capacidade industrial da China e por mais que o país seja conhecido pela despreocupação na hora de copiar tudo o que seus concorrentes desenvolvem, a Comac ainda está longe de conseguir suprir a ausência da Boeing do mercado chinês — que tem planos de mais do que dobrar sua frota de jatos comerciais e passar das atuais 4.500 para um total de quase 10.000 aeronaves até 2043. 

A Comac, que entregou apenas 12 aparelhos no ano passado, tem em carteira pouco mais de 700 encomendas. Ela pode, perfeitamente, avançar e melhorar esses números de forma surpreendente, como é comum quando se trata de organizações chinesas. Só que, dificilmente, ela conseguiria isso sozinha. Por mais chinesa que seja, ela ainda é altamente dependente de fornecedores de outros países, especialmente dos Estados Unidos.  

Os aviões da Comac são equipados com motores Leap-1C, desenvolvidos por uma joint-venture entre a norte-americana GE e a francesa Safran. Os principais aviônicos utilizados no projeto chinês — ou seja, os equipamentos eletrônicos responsáveis pela navegabilidade da aeronave e, ao fim e ao cabo, por mantê-la no ar em condições de segurança — são produzidas por empresas como a Honeywell e a Northrop Grumman, dos Estados Unidos.  

Tudo isso para dizer o seguinte: as indústrias dos dois países, em sua ponta mais sofisticada, estão entrelaçadas demais e desenvolveram uma teia de interesses comuns que avançou e se consolidou demais para ser desfeita de uma hora para outra ao sabor das canetadas de Trump ou do chinês Xi Jinping. Para que essa teia se desfaça serão necessários anos e anos de uma guerra comercial que, por enquanto, está apenas começando.  

Se for conduzida sem exageros pelas duas maiores potências do mundo, a guerra comercial pode, pouco a pouco, gerar oportunidades e abrir vantagens gradativas para países que nunca conseguiram furar o bloqueio imposto pelo poderio econômico dos dois países e participar de forma mais ativa do jogo econômico mundial. Um desses países é o Brasil. 

A propósito, o Brasil tem tudo para se beneficiar da disputa entre os gigantes e estabelecer alianças que o consolidem como a grande potência energética do Século 21. As cartas estão na mesa. A questão é saber jogá-las sem se deixar contaminar por ranços e preferências ideológicas que, neste momento, podem gerar um retrocesso perigoso para qualquer país que se achar mais importante do que é nessa disputa entre as duas superpotências.  

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