
Nos sabores, nas vitrines e no cheiro de fogão a lenha queimando, resistem as memórias de uma cidade que, embora jovem, carrega histórias profundas. Em meio às mudanças de Brasília, alguns estabelecimentos seguem firmes como marcos culturais: a Churrascaria Paranoá, sendo a primeira da cidade, a Pizzaria Dom Bosco, com sua fatia servida no balcão desde os anos 1960; e a loja Verdurão, que transformou o orgulho candango em marca registrada. Mais do que comércios, são pedaços da identidade brasiliense que continuam a pulsar no coração da capital.
Churrascaria Paranoá: onde o sabor preserva a alma de Brasília
Antes mesmo de Brasília sair do papel, o cheiro de lenha e carne assada já invadia a beira da Barragem do Paranoá. Foi em 1956, entre poeira vermelha, cerrado fechado e o barulho das retroescavadeiras, que o mineiro Calixto dos Santos fincou os alicerces do que viria a ser um dos restaurantes mais antigos e emblemáticos da capital. A Churrascaria Paranoá nasceu de uma guarita de madeira improvisada para alimentar os operários que trabalhavam na construção da barragem. Quase sete décadas depois, o espaço continua de pé, firme, acolhedor e cheio de história.
“Naquela época, era só mato. Até índios passavam pedindo comida. Meu pai servia lanche, café, arroz com carne. Ele chegou aqui com coragem e braço forte”, conta Fábio Martins Santos, atual proprietário da casa, que herdou o ofício e a missão de manter vivo o legado de Calixto. Hoje, aos 50 anos, Fábio é guardião de uma Brasília que sobrevive nas memórias dos antigos candangos e no tempero de pratos que resistem ao tempo.
A transição da pequena lanchonete para churrascaria aconteceu em 1970. A estrutura de madeira ganhou forma definitiva com piso de cimento queimado, forro de ipê e vista ampla para o cerrado. Mas não perdeu a simplicidade. “O cliente chega e sente como se voltasse no tempo. Tem gente que se emociona ao reencontrar aqui o cheiro da infância”, diz Fábio.
A fama da casa se espalhou rapidamente, impulsionada pela comida farta, pelo ambiente rústico e pelas figuras que ali frequentavam. Juscelino Kubitschek era um dos visitantes mais ilustres. “Ele vinha só com o motorista, sem segurança. Sentava no fundo, tocava viola, pedia cordeiro assado — era o prato preferido dele”, lembra o chef.
Além de JK, muitos engenheiros, políticos e candangos históricos passaram pelas mesas do Paranoá. Em comum, todos encontraram ali um refúgio onde o tempo parecia desacelerar, embalado pelo cheiro de brasa, pelo som dos pássaros e pelo calor humano de quem recebe afeto.

50 anos de casa e de cozinha
Fábio Martins Santos praticamente nasceu entre as mesas da churrascaria. “Minha história está toda aqui. São 50 anos convivendo com esses aromas, com essas paredes. Cresci ouvindo histórias de candangos, vendo meu pai cortar carne e comandar o fogão”, conta.
Assumiu oficialmente o restaurante em 2011, após a morte de Calixto. Mas a caminhada até o comando não foi simples. Herdeiro de uma família grande — oito irmãos de três casamentos diferentes —, Fábio enfrentou disputas internas e resistências. “Enquanto uns só viam o valor comercial, eu via a história. Brasília está impregnada nas paredes desse lugar”, diz ele, ao lado da esposa, Luciene Ferreira, que o acompanha na administração da casa há mais de duas décadas.
O cardápio: tradição e identidade
Se o ambiente preserva a rusticidade dos tempos de JK, o cardápio reforça a alma sertaneja e candanga da casa. Alguns pratos permanecem intocados desde a fundação, como o cordeiro assado na brasa, receita aperfeiçoada por Calixto e celebrada por gerações. “É feito lentamente, com fogo de chão, como manda a tradição. A carne desmancha na boca”, explica Fábio.
Outro clássico é a galinha caipira ensopada, acompanhada de arroz, pirão e quiabo — prato que evoca o interior mineiro e nordestino. A buchada de bode, temperada com ervas da região, é pedida certa entre os frequentadores mais antigos. E para os paladares curiosos, o restaurante oferece também iguarias como o filé mignon de jacaré: “É exótico, sabor entre o peixe e o frango. Muita gente pede só para experimentar, mas acaba voltando”, diz o chef, com orgulho.
Há ainda picanha na brasa, carne de sol com mandioca amarela, rabada com agrião e torresmo de barriga, servidos em panelas de ferro e travessas generosas. O almoço é à la carte, com fartura, calma e aquele tempo que não corre, apenas caminha. “Aqui ninguém almoça olhando para o relógio. É comida para quem quer lembrar e sentir”, define.
A Churrascaria Paranoá abre de terça a domingo. Nos fins de semana e feriados, o salão enche de famílias que visitam o restaurante há gerações. “Tem gente que vinha com o pai e hoje traz o neto. Eles se sentam na mesma mesa, pedem o mesmo prato. É muito mais que uma refeição. É um rito”, diz Fábio.
Durante a semana, o movimento é mais tranquilo, mas nem por isso menos simbólico. “Recebo muito idoso que vem sozinho, pede um prato e fica ali, olhando para a vista, lembrando. Aqui é lugar de silêncio bom, de memória viva”, afirma.
Fábio sabe que, em um mundo acelerado, manter um restaurante com alma de 1956 é um ato de resistência. “Se me oferecessem um hotel cinco estrelas no Plano Piloto, eu não trocaria. Aqui eu nasci, criei meus filhos, enterrei meu pai. Aqui é meu chão.”
Tradição servida em pé: a história da Pizzaria Dom Bosco
Brasília ainda respirava poeira vermelha e expectativas quando Enildo Veríssimo Gomes, hoje com 79 anos, deixou Minas Gerais e partiu rumo à nova capital do país. Corria o início da década de 1960 e, aos 18 anos, o jovem mineiro e migrante buscava oportunidades em um território recém-nascido. “Um amigo me falou: ‘Vai embora pra Brasília, lá é o El Dourado agora, não falta emprego’”, relembra.
Chegando à cidade, deparou-se com uma paisagem inacabada, em que as quadras ainda eram promessas e o cerrado se misturava a acampamentos improvisados. “Essa quadra aqui nem existia. Era tudo acampamento. Só tinha uns blocos na 105. A parte de baixo era tudo cerrado”, conta. Em meio à construção da nova capital, Enildo iniciou sua jornada como tantos outros pioneiros: trabalhando onde houvesse vaga. Passou por armazéns, hospitais e padarias, mas o destino o guiaria de volta a um ofício que conhecia desde pequeno — o ramo alimentício.

Do balcão à fama
O ponto onde hoje funciona a Pizzaria Dom Bosco era, inicialmente, uma padaria modesta. Com a chegada de grandes concorrentes, Enildo percebeu que precisava se reinventar. Transformou o espaço em lanchonete e decidiu apostar na pizza, inspirando-se em experiências anteriores que trouxe de Minas Gerais. “Lá a gente vendia na mesa. Aqui, resolvi vender no balcão”, diz.
A ideia de servir pizza em pedaços, no balcão e em pé, nasceu da observação atenta e da tentativa e erro. “Comecei com sabores como presunto e calabresa, mas a pizza esfria e fica feia. Aí inventei de colocar o molho por cima do queijo. Ficava bonito, com orégano, bem apresentável, e gostoso mesmo fria.” A fórmula simples, saborosa e prática conquistou os brasilienses, e o balcão da Dom Bosco virou ponto de encontro.
O segredo do sucesso
Mais do que uma pizza gostosa, a Dom Bosco construiu sua reputação sobre um princípio inegociável: a constância. “A pizza tem que ter o mesmo gosto de manhã, de tarde e de noite. O queijo tem que ser o mesmo, o molho igual, o tamanho igual. Não pode sair crua nem torrada”, afirma Enildo, que até hoje chega à pizzaria por volta das 5h da manhã para fiscalizar a produção da massa e dos salgados.

A matéria-prima, segundo ele, é escolhida com rigor. “Eu só trabalho com produtos direto da indústria. A farinha, por exemplo, compro da fábrica. Custa mais caro, mas é de qualidade.” É essa fidelidade aos padrões que, para Enildo, garante o sabor e a experiência que atravessam gerações. “Hoje é difícil chegar um cliente que eu não conheça. A menina que sentava aqui no balcão hoje já é avó.”
A Dom Bosco cresceu junto com Brasília, acompanhando a transformação da cidade e da sua gente. Clientes que ali comiam durante a juventude agora voltam com filhos e netos. “Hoje estamos atendendo a 10ª, talvez 12ª geração de clientes. Gente que vinha aqui adolescente, hoje traz os netos. É emocionante”, diz, com os olhos brilhando de orgulho.
A pizzaria virou também ponto turístico e atrai curiosos de todo o Brasil. “Já teve gente que veio de São Paulo, viu na internet, na Ana Maria Braga, e veio experimentar. Me ligam de Mato Grosso perguntando como é que eu vendo pizza em pé, só de um sabor, até hoje. Eu respondo: pergunta pra Deus.”
Hoje, são cinco unidades da Dom Bosco espalhadas por Brasília, administradas por filhos, sobrinho e esposa de Enildo. Uma delas funciona como confeitaria e pizzaria, com mesas — um formato diferente da matriz, que segue inalterada. “Essa aqui é a tradicional. Aqui não pode mexer. É comer em pé, rápido, e sair. Foi assim que deu certo, e é assim que tem que ser.”
Nome de santo e tradição preservada
O nome da pizzaria também tem uma origem especial. Dom Bosco, o santo. “Eu estudei no Colégio Dom Bosco, terminei o ginásio lá. Quando cheguei em Brasília e resolvi montar a pizzaria, coloquei esse nome. Tinha muito estabelecimento com esse nome na época, mas fui o único que manteve. Acho que é ele que está me protegendo até hoje.”
Religioso, trabalhador e fiel às suas raízes, Enildo acredita que o sucesso da pizzaria está em algo além da receita. “A gente tem que ser a gente. Não é porque eu sou dono da Dom Bosco que eu subo no tamanco. Eu nunca disse que a minha pizza é melhor que a dos outros. É o povo que fala.”
Em tempos de inovação constante no setor alimentício, Enildo defende a preservação do estilo que fez da Dom Bosco uma instituição brasiliense. “Se perguntar se eu vou lançar sabor novo, digo que não. Tem que preservar. Um freguês já falou: ‘Aqui tem que ser em pé, é bom assim, rápido’. Não pode mudar, não.”
Mais do que uma pizzaria, a Dom Bosco é um símbolo de pertencimento, um elo afetivo entre o passado e o presente da capital federal. Sua história se mistura à da cidade e das famílias que cresceram com ela.
Verdurão: a marca que ensinou Brasília a se amar
Por mais de duas décadas, a Verdurão tem sido mais do que uma marca de camisetas: é uma parte viva da memória afetiva de Brasília. Criada no Conic, ainda nos anos 2000, por um casal de adolescentes que amava rock e queria vestir as bandas que curtia, a marca nasceu de maneira quase improvisada — e profundamente simbólica. “Na época, não tinha onde comprar camiseta de banda. Eles começaram a fazer para eles mesmos, levavam pros shows, e a galera começou a pedir”, conta Wesley Santos, publicitário e atual responsável pela Verdurão.
O nome veio de um detalhe despretensioso, mas marcante: a lona verde da barraquinha improvisada onde os criadores vendiam as camisetas nos eventos. “Se perder, a gente se encontra ali no verdão”, virou a senha entre amigos. O apelido pegou, e o que era brincadeira virou nome oficial.

“Muita gente cresceu passando por ali. A gente ouve direto histórias de pessoas que juntavam a mesada pra comprar uma camiseta por mês. Tem toda uma geração que se formou com essa referência”, lembra Wesley. E essas memórias permanecem vivas: “Tem gente que ainda usa camiseta de 10, 15 anos atrás. A peça tá inteira, com tecido bom. A gente teve um caso de um cara que cresceu, a camiseta ficou tipo um baby look, mas ele continua usando. É esse o tipo de afeto que a gente carrega.”
Quando a loja surgiu, Brasília completava 40 anos e ainda buscava sua identidade. “A Verdurão foi a primeira a fazer camisetas da tesourinha, do Eixão, do Pardal”, conta Wesley. “As pessoas olhavam e diziam: ‘Ué, só a gente entende essas coisas!’. Ajudamos a criar esse sentimento de pertencimento.”
Em uma cidade muitas vezes reduzida aos escândalos políticos, a marca virou resistência. “Mostramos que Brasília é mais que a Praça dos Três Poderes: é o Cerrado, a arquitetura, a vida que pulsa aqui”, diz. A conexão com o bioma local é outra paixão: “Fomos a primeira marca do Brasil a falar do Cerrado. Hoje, ele é o bioma mais devastado, mas a gente sempre enxergou sua riqueza.”

Enquanto outras marcas lançam coleções de inverno ou outono, a Verdurão faz diferente: “Temos só ‘coleção seca’ e ‘coleção chuvas’”, brinca Wesley. “Brasília não tem estações clássicas — tem sol que torra e chuva que alivia.” O “comfort style” da marca nasceu da observação do cotidiano candango: “Todo mundo já achou que dava pra ir a pé da Rodoviária à Catedral e se arrependeu. Nossas roupas são feitas para sobreviver a isso.”
A transição da camiseteria para uma marca de moda autoral, cheia de identidade local foi um desafio: “Cuidar de camiseta é uma coisa, agora cuidar de roupas com muitos detalhes exige outro nível de atenção. A gente sempre teve essa preocupação com a qualidade: usamos o melhor algodão do Brasil, cuidamos da costura, do acabamento, até daquele detalhe que ninguém vai ver. Mas quem entende, reconhece”, explica Wesley.
A marca também apoia artistas locais em coleções especiais, como Brixxs, Pedro Sangeon (Gurulino), Toys e Omik (Grafite), Nicolas Berh (poeta). “Se vamos promover alguém, que seja os nossos”, afirma Wesley. Além disso, em tempos de queimadas no Cerrado, a Verdurão criou camisetas para arrecadar fundos destinados aos brigadistas. “Não é só vestir a cidade, é cuidar dela.”
Hoje a Verdurão conta com sete lojas físicas, localizadas em Águas Claras (Edificio Max Mall), na 506 da Asa Sul, na Infinu, na 113 Norte e no Liberty Mall e mais duas lojas no Aeroporto. Os projetos de expansão estão em curso e a Verdurão mantém o DNA de origem. “Somos embaixadores de Brasília”, define Wesley. “Nossa missão é mostrar ao Brasil como essa cidade é única.”
O Complexo da Verdurão na W3 Sul tem seus planos, Wesley conta que os próximos planos é ajudar na revitalização da W3: “Poderíamos ter escolhido um shopping, mas queremos ajudar a revitalizar a W3”, explica. O plano inclui um café, restaurante e espaço cultural no local. “É o nosso presente para Brasília.”