MAYARA PAIXÃO
GUAYAQUIL, EQUADOR (FOLHAPRESS)
Ismael, 15, era jogador profissional de futebol e queria um dia ir ao Brasil em busca de uma carreira como a de Neymar, seu ídolo. Para o irmão Josué, 14, o destino sonhado era a França de Mbappé. Mas os sonhos dos irmãos Arroyo hoje não são mais do que uma memória.
Os meninos equatorianos foram assassinados em dezembro passado junto a outros dois amigos, Nehemías Saul, 14, e Stevan Medina, 11, após serem levados por militares no bairro pobre de Las Malvinas, na cidade costeira de Guayaquil. Todos eram negros de pele retinta.
“Es donde las papas queman” (algo como “é onde o bicho pega”), dizem os moradores do centro comercial de Guayaquil ao se referirem à periculosidade do bairro ao sul da cidade dominado pela facção criminosa Los Carniceros.
Com exceção dos ambulantes que vendem frangos e verdes (bananas típicas do Equador), a maior parte dos comércios de Las Malvinas e dos arredores está abandonada, um efeito das vacunas, propina mensal cobrada pelo narcotráfico que sufoca os vendedores.
Mas até aqui as evidências do crime que gerou comoção nacional não levaram a nenhuma relação com os Los Carniceros. Os quatro meninos foram levados por militares até debaixo de uma ponte ao lado de Las Malvinas, cena gravada por uma câmera de segurança pública.
Desaparecidos por quase três semanas, seus corpos foram encontrados queimados. Os relatórios legistas lidos pela reportagem descrevem que há sinais de tortura e que os quatro foram baleados pelas costas. Dezesseis militares estão presos, e uma investigação está em curso.
“Meus filhos tinham o propósito de comprar uma casa para a mãe por meio do futebol; em vez disso, apenas por serem negros e viverem em um bairro pobre, foram vítimas desse crime aberrante cometido pelos militares”, diz Luis, pai dos irmãos Arroyo e de outros três filhos.
O crime mudou a dinâmica das famílias do bairro. A poucos passos da casa onde vivia Nehemías, ele é descrito por María, 65, como um menino que tinha corpo de homem, mas cabeça de criança. O adolescente de 14 anos ia com frequência à casa dela, uma construção improvisada de bambu, assim como era a casa de Nehemías, agora sendo reformada com a ajuda da Prefeitura para ser erguida com tijolos.
“São sempre os meninos de poucos recursos e negros”, diz María, avó de 23, a maioria de perfil semelhante ao dos “quatro de Guayaquil”, como os meninos assassinados ficaram conhecidos. Os netos de María já não têm permissão para caminhar sozinhos mais além do quarteirão.
Há um ano e meio no cargo, o presidente Daniel Noboa, que tenta se reeleger neste domingo (13) em uma disputa contra Luisa González (esquerda), declarou no início do ano passado que o Equador era um país em estado de guerra, ou, mais exatamente, em conflito armado interno contra o narcotráfico. Ele militarizou a segurança pública.
O CDH (Comitê pela Defesa dos Direitos Humanos), uma respeitada organização civil sediada em Guayaquil, tem conhecimento de 33 casos de desaparecimento forçado de civis com envolvimento de patrulhas militares ao longo do ano passado, diz o diretor Billy Navarrete. Sete são menores de idade, cifra que inclui os “quatro de Guayaquil”.
A maior parte dos casos ocorreu nas províncias costeiras (Los Ríos, Esmeraldas e Guayas, onde fica Guayaquil). São as regiões onde está concentrada a população afroequatoriana e também a atividade do narcotráfico, escoada pelos portos do Pacífico. É um cenário bem mais agravado do que o que se passa na sierra, como em Quito, e na Amazônia equatoriana.
Navarrete diz que existe um padrão nos casos. Menciona, por exemplo, o fato de muitas das vítimas serem encontradas nuas. “É como uma disciplina militar que se aplica até nesses casos, um empenho por tirar toda a dignidade dos jovens, como às vezes se ensina nos quartéis.”
Com sua política linha-dura, o governo de Noboa conseguiu reduzir em 16% os homicídios no ano passado. Mas a redução já foi freada. Nos 50 primeiros dias deste ano, 1.300 assassinatos foram contabilizados, ou um homicídio por hora. É um número 40% maior que o de 2023, o mais violento da história do país.
Às portas da eleição, ele quer dobrar a aposta. Anunciou uma espécie de parceria com a controversa empresa americana de mercenários Blackwater, conhecida mundialmente por sua atuação na Guerra do Iraque, especialmente no episódio que em 2007 matou 14 civis no país.
Há poucos dias o fundador da empresa, Erik Prince, acompanhou uma operação militar em Guayaquil. Para muitos, trata-se de uma jogada de marketing do presidente com foco eleitoral. O governo bateu bumbo para a sua presença, e o ministro da Defesa, Gian Carlo Loffredo, acompanhou o empresário em vários momentos.
Após as evidências do caso dos “quatro de Guayaquil” envolverem de forma inquestionável os militares, o presidente Noboa sugeriu que os meninos fossem considerados heróis nacionais, o que para os pais de Ismael e Josué não faz o menor sentido.
“Passaram-se quatro meses desde este crime desumano, e não tivemos ajuda do Estado”, diz Luis, o pai.
“O presidente não se comunicou com a gente, nem nos deu os pêsames. E o que os militares têm feito é tentar desonrar nossos filhos e tentar justificar o que fizeram com eles.”
A família se agarra à fé para seguir. “Aos olhos de Deus, não existe raça ou cor”, diz Katty, mãe dos meninos.
Nos meses que antecederam os assassinatos, redes sociais como o TikTok foram tomadas por vídeos com militares humilhando e agredindo jovens detidos. Em alguns, os agentes exigiam que eles dançassem e cantassem. Em outros, batiam com varas de madeira em seus dedos. Muitos dos comentários celebravam essas ações.
Para a população jovem, especialmente a da região costeira do Equador, as esperanças estão cada vez mais afuniladas: o recrutamento pelas máfias do narcotráfico, o consumo de drogas ou a morte.
Reiterados relatórios mostram uma evasão escolar cada vez maior nas províncias da costa e traçam uma relação direta com o recrutamento pelos grupos criminosos. Somente no ano de 2023, 119 mil crianças equatorianas abandonaram a escola, mostram dados oficiais.
No crime, esses jovens atuam como vigias nos bairros, transporte de drogas até os portos e, no limite, sicários, que matam por dinheiro. Quando não estão no crime, as oportunidades igualmente são minguadas. A renda média de um jovem de 15 a 29 anos no Equador é de US$ 189 (ou R$ 1.117), em um país no qual há 25 anos o dólar é a moeda oficial. O desemprego nessa faixa etária gira ao redor de 80%.