VINICIUS SASSINE
BELÉM, AL (FOLHAPRESS)
A Justiça do Pará determinou que o governo do estado amplie o serviço de perícia médico-legal a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual no arquipélago do Marajó, uma região da amazônia atlântica brasileira onde estão 17 cidades e onde mais da metade das pessoas vive em comunidades ribeirinhas.
A decisão, proferida nesta quinta-feira (10), obriga a gestão do governador Helder Barbalho (MDB) a providenciar pelo menos 26 médicos legistas para atuação efetiva nas 17 cidades do arquipélago. O prazo dado para isso é de um ano. Cabe recurso.
“O deslocamento das vítimas para municípios distantes daquele em que ocorreu o fato vai totalmente ao contrário do dever estatal de garantir amparo e dignidade aos direitos fundamentais”, afirmou a juíza Rachel Mesquita, com atuação na 5ª Vara da Fazenda Pública, em Belém, responsável pela decisão judicial.
Uma ação civil pública foi movida em 2022 pela Cáritas Brasileira, que atua na região Norte. A Cáritas é um organismo da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) e desenvolve um projeto de enfrentamento ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes em nove cidades do Pará, entre elas Curralinho e Melgaço, no Marajó.
Levantamento citado na ação aponta que o Pará tem 108 peritos médico-legistas efetivos, distribuídos em cinco municípios -a maioria deles na capital, Belém. Não há peritos efetivos em toda a região do Marajó, segundo a Cáritas.
O Ministério Pùblico do Pará se manifestou no processo e concordou com os apontamentos e pedidos feitos pela Cáritas à Justiça, como o de ampliação do serviço de perícia a vítimas de violência sexual, tanto no Marajó quanto em outras regiões desassistidas no Pará.
“Fica evidente a responsabilidade direcionada ao ente público de priorizar a efetivação absoluta dos direitos da criança e do adolescente, em particular no que se refere à apuração especializada na ocorrência de crime sexual, que se realiza, principalmente, por meio da atuação profissional de médico legista”, diz parecer da Promotoria na ação civil pública.
A reportagem questionou o governo do Pará sobre a decisão judicial e aguarda uma resposta.
A Justiça concordou com os apontamentos da Cáritas e da Promotoria sobre o vazio do serviço de perícia a vítimas de violência sexual, especialmente no arquipélago do Marajó.
“Não é difícil imaginar que um crime em face da criança e do adolescente que tenha ocorrido em Melgaço, distante 249 km de Belém, tenha seu curso de investigação e resolução obstado pelas dificuldades de acesso a transportes e ao suporte estatal de proteção”, disse a juíza na decisão.
A reportagem da Folha esteve na parte ocidental do arquipélago, onde estão as cidades de Breves e Melgaço, em abril de 2024. Nessa porção do Marajó estão as cidades e zonas rurais mais desassistidas e mais pobres.
Embarcações comerciais de grande porte fazem o percurso de Belém a Breves em 14 horas. Entre Breves e Melgaço, a distância é de uma hora numa lancha. E dos núcleos urbanos às comunidades ribeirinhas, as distâncias podem variar de 2 a mais de 6 horas pelos rios da região.
Reportagem mostrou que casos frequentes de violência sexual e gravidez precoce no Marajó são alimentados pela desassistência às comunidades ribeirinhas.
Quando a reportagem esteve na região, o Conselho Tutelar de Breves, a Delegacia de Atendimento à Criança e ao Adolescente e a rede de assistência psicossocial não tinham lanchas próprias para acesso às comunidades. O trabalho de campo dos conselheiros só ocorria quando havia um empréstimo da lancha pela Polícia Militar ou quando a Prefeitura de Breves conseguia a locação de um veículo.
Não havia ambulatório para vítimas de violência sexual, a delegacia não funcionava aos fins de semana, inexistia um serviço de acolhimento e hospedagem para adultos que acompanham crianças e adolescentes que passaram por um abuso sexual. Algumas cidades do arquipélago não têm abrigos para crianças, que precisam ser levadas a outros municípios.
Em um relatório de setembro de 2023, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do governo Lula (PT) apontou a existência de exploração sexual e disse que as dinâmicas desses crimes “não possuem correspondência nos dados oficiais de atendimento, resultando num quadro histórico e atual de subnotificação”.
A predominância, porém, é de violência sexual intrafamiliar ou intracomunitária, numa lógica que, muitas vezes, desafia o sistema de assistência social.
Marajó acabou estigmatizado em relação ao problema em razão da atuação de políticos como a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ministra de Direitos Humanos no governo Jair Bolsonaro (PL).
Ela divulgou situações de exploração sexual no arquipélago não comprovadas por ela mesma nem confirmadas pela polícia e pela Promotoria.
A atual gestão do governo federal lançou um programa, o Cidadania Marajó, com previsão de ações para enfrentar abuso e exploração sexual infantil.
Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos disse que o programa não atua diretamente na lotação de peritos, sendo essa uma competência da Polícia Civil. Dois centros de atendimento a vítimas estão sendo equipados em Soure e Portel, em parceria com o Governo do Pará, segundo a pasta.
Há ainda a previsão de implementação de serviço de perícia científica para vítimas ou testemunhas, dentro de um pacto de escuta protegida no Marajó, afirmou o ministério. “O plano de trabalho para essa ação ainda está em construção.”
Um indicador levado em conta pelo ministério, que pode denotar reiteração de abusos, é o de gravidez entre crianças e adolescentes do Marajó.
Dos 50,1 mil bebês nascidos vivos no arquipélago de 2019 a 2022, 14 mil são de mães com até 19 anos.
Isso significa uma taxa de gravidez na adolescência de 28%, segundo dados do Sinasc (Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos). No Pará, essa taxa é de 22,5%. No Brasil, de 14,5%, conforme o ministério.
A pasta e o Governo do Pará dizem que indicadores de violência sexual não diferem de determinadas regiões do país.
No fim de abril do ano passado, uma segunda reportagem da Folha mostrou como a fome e a insegurança alimentar fazem parte do cotidiano de famílias ribeirinhas. Também há grande quantidade de casos de violência obstétrica, com mortes de mães e bebês após périplos por ajuda médica na hora do parto.