EUA terão recessão, e China e Europa ocuparão espaço aberto por Trump, diz economista de grupo global de bancos

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FERNANDO CANZIAN
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

O presidente Donald Trump comete erros básicos em sua política tarifária que levarão os Estados Unidos brevemente a uma recessão. No longo prazo, as medidas do republicano fortalecerão a China e a Europa, que ocuparão cada vez mais o espaço que está sendo aberto pela maior economia do mundo.

A previsão é do brasileiro Marcello Estevão, 59, diretor-gerente e economista-chefe do IIF (Instituto de Finanças Internacionais, na sigla em inglês), que reúne 400 dos maiores bancos e instituições financeiras do mundo em uma espécie de Febraban global.

Ex-diretor de Macroeconomia, Comércio e Investimentos do Banco Mundial e com passagens pelo Fed (o banco central dos EUA) e Fundo Monetário Internacional, Estevão acredita que Trump e os republicanos pagarão caro nas chamadas “midterm elections”, em novembro de 2026, quando estarão em jogo 33 vagas no Senado e as 435 da Câmara.

PERGUNTA – Tem alguma chance de dar certo a estratégia do governo Donald Trump de reindustrializar os EUA e diminuir seu déficit comercial com a imposição de tarifas contra países?

MARCELLO ESTEVÃO – É uma aposta equivocada, porque uma reindustrialização não traria os empregos que na cabeça do presidente são bons. Ele está pensando com a cabeça da década de 1960 ou 1950.

Aqueles empregos não existem mais. A indústria hoje é supermecanizada, robotizada. É por isso que o emprego industrial como proporção do PIB tem caído em todas as sociedades avançadas. É um fenômeno tecnológico, que não tem nada a ver com o comércio.

É um diagnóstico errado achar que, colocando tarifa, você vai atrair indústria, e essas indústrias vão criar muitos empregos. Isso não acontece nem na China, onde a produção industrial também é robotizada e mecanizada. Como eles têm muita indústria, há muito emprego industrial, mas o progresso tecnológico também está presente na China. Não há a menor chance de isso dar certo.

P – Qual o problema deste governo? É só a cabeça de Trump ou seus assessores pensam como ele? O secretário do Tesouro, Scott Bessent, entende de macroeconomia, trabalhou em hedge funds. Como o entorno do presidente embarca nessa?

ME – O poder é muito tentador, e essas pessoas estão associadas a uma corte conservadora que optou por apoiar o presidente Trump por causa da popularidade dele. Essa política vem da cabeça do Trump, e vejo essas pessoas tentando justificá-la, inclusive de maneiras diferentes e contraditórias.

Justifica-se usar tarifa como um modo de conseguir mais receita fiscal. Se isso é verdade, qualquer teoria de taxação diria que você tem que maximizar a base dessa taxação. Então, o seu objetivo não é diminuir a quantidade de importação, é de maximizar a renda tributária.

Outros dizem que isso é para melhorar o déficit comercial. Se é para reduzir a importação, isso vai contra o primeiro objetivo [aumentar a receita fiscal com as tarifas]. E se é para aumentar o número de empregos, isso vai contra diminuir a importação, pois, para produzir, é preciso importar e produzir a um custo razoável. Portanto, essas razões ditas por aí são inconsistentes.

A verdade é que o presidente Trump acredita que tarifa é algo bom. E as pessoas ao redor dizem “sim, senhor”. Está acontecendo e vai acabar mal, em particular para a economia americana. Porque o governo está criando um choque de oferta. É similar ao choque do petróleo na década de 1970.

A diferença é que, lá, ele afetou setores particulares. Mas as tarifas são gerais e afetam todos os setores, todos os tipos de importação. Como aprendemos com a América Latina, isso não funciona. No médio e longo prazo causa queda de produtividade e de competitividade, o que é ruim para todo mundo.

P – Porque a questão de base é o fato de os Estados Unidos consumirem mais do que são capazes de produzir. Por isso há déficit, certo? E se os americanos quiserem agora continuar consumindo, vão pagar mais caro, inflacionando a economia, não?

ME – O interessante do ponto que você coloca, o que eu já fiz milhões de vezes, é que ele é trivial. Mas as pessoas não entendem, e não é nem economia. É uma questão de contabilidade. Essa mesa na minha frente, por exemplo: alguém tem que produzir. Se eu não produzo, mas eu demando, essa mesa vai vir de fora. Se eu coloco uma tarifa sobre a mesa, e eu preciso muito dessa mesa, eu vou comprar de qualquer jeito, mais cara. Mesmo que eu desista da mesa e compre outras coisas, elas também estão tarifadas.

Portanto, o déficit não cai, ele só muda de característica.

O déficit da balança comercial é simplesmente uma função da diferença entre o quanto você poupa e o quanto você investe. Poupança você considera a renda menos consumo do governo e das pessoas. Aí você ainda tem o investimento do governo e das empresas. Se você investe mais do que poupa, o déficit comercial vai ter que fechar essa conta.

Mas se você botar uma tarifa muito alta, você ou não exportar ou vai ter que consumir menos. Aí a poupança aumenta, lógico. Mas como isso se chama? Recessão. Eu prevejo uma recessão para os EUA no segundo trimestre e no terceiro trimestre desse ano.

Do ponto de vista do Fed, ele deve começar a cortar a taxa de juros provavelmente em julho ou setembro. Pois vai demorar um pouco para analisar os impactos inflacionários e de atividade. Acho que, no final das contas, o impacto na atividade vai ser uma coisa mais importante para o Fed do que o inflacionário, que vai tender a ser significativo, mas provavelmente vai ser interpretado como temporário.

P – Mas, em termos de desaquecimento ou recessão, será algo forte?

ME – É forte porque a economia americana vem com uma saúde impressionante. Em dezembro falávamos de como a economia americana está supersaudável e estávamos muito preocupados com a Europa. Isso mudou, porque na Europa teve esse impulso, em particular na Alemanha, para o governo gastar mais, investir em coisas importantes como infraestrutura e defesa.

Nos Estados Unidos foi o oposto, com toda essa incerteza. Vai cair o investimento, e estamos vendo isso no mercado financeiro. As pessoas estão muito pessimistas, com razão. Nesse sentido, é uma mudança grande.

P – Mas mesmo que seja uma recessão pequena, os EUA cresceram 2,8% em 2024. Se entrar no negativo é uma queda grande para uma economia de quase US$ 29 trilhões, certo?

ME – É muito preocupante. Espero que eu esteja errado, mas eu não consigo ver como é que não vamos ter certamente vários meses de crescimento negativo ou nulo, o que, de novo, para os Estados Unidos isso é uma recessão. E é um autoflagelo, algo basicamente direcionado por uma série de políticas de uma visão de mundo equivocada, das décadas de 1950 ou 1960.

P – Qual deve ser a reação do público, não só dos eleitores de Trump, mas de seu eleitorado? Porque são duas vertentes. A primeira é uma perda de poder aquisitivo com o aumento de tarifas. A outra, de destruição da riqueza dos americanos via queda da bolsa.

ME – Primeiramente, para deixar bem claro, o impacto da inflação vai ser realmente muito imediato. Mas fico na dúvida com o longo prazo, se vai afetar a expectativa de inflação lá na frente.

P – Porque a tarifa sobe uma vez só, certo?

ME – Exato. Aí, vamos ver. Vai demorar alguns meses para o Fed chegar a um diagnóstico. Mas mesmo que você ache que há coisas que os Estados Unidos possam produzir, dentro daquilo que hoje o país importa, essas coisas vão ser mais caras. Por quê? Porque se não fossem, elas já estariam sendo produzidas aqui. Tem coisa que não tem a menor chance de os Estados Unidos produzirem. Não vão produzir café, banana. E as tarifas foram para todo mundo.

Eles pensam como se fosse algo factível ter uma balança comercial equilibrada com todos os países. Isso não faz o menor sentido. Um país pequeno que produza banana vai ter um superávit comercial vis-a-vis os Estados Unidos. Isso não tem nada a ver com política comercial errada.

Tem coisas que nunca vão ser produzidas, como camisetas. Não tem mais espaço. Isso vai ficar mais caro. Vamos ter de continuar importando de Bangladesh e pagando mais. Essa política tarifária não foi feita de modo pontual, por questões de segurança nacional. É uma coisa geral.

E vai afetar todo mundo. Eleitor de Trump ou não. Parte dos eleitores dele não são trumpistas, mas pessoas que não queriam a continuação do governo do Joe Biden. De certo modo, com razão, pois o governo cometeu vários erros. Essas pessoas vão se opor ao Trump, e é um contingente significativo.

A parte mais radical trumpista, eu diria que soma entre 20% e 30% do eleitorado. Então, acho que o presidente Trump está superestimando sua popularidade, a capacidade de se manter no poder ou de eleger um sucessor em 2028. Ele ganhou a eleição por um pouquinho. Teve o mesmo número de votos, basicamente, de quando concorreu contra o Joe Biden. A diferença é que a Kamala Harris teve quatro milhões de votos a menos. E esses quatro milhões de votos voltarão na próxima, provavelmente contra Trump.

No médio prazo, se essa política continuar, e parece que vai por um bom tempo, Trump vai perder de longe as “midterm elections” no final de 2026.

P – Essa política de fato causará uma mudança de eixo na influência americana no mundo e uma ascensão maior da China?

ME – Com certeza. E não é só da China. Da Europa também. Imagine o que a política do governo Trump está fazendo os europeus pensarem. Eles estão numa região rica, com 450 milhões de pessoas, três vezes mais que a população da Rússia. Muito mais rica em termos de renda per capita do que a Rússia, que tem um PIB menor do que a Itália, e potencialmente muito mais poderosa do que a Rússia.

Mas era uma região que estava dependendo dos Estados Unidos para sua proteção porque não queria investir em defesa. Agora, isso mudou. A Europa tem muito mais capacidade econômica, populacional e tecnológica do que o seu inimigo imediato ali na fronteira [Rússia] e vai começar a investir em defesa. Não precisa mais dos Estados Unidos.

Já na segunda região mais rica do mundo, a influência americana caiu muito. A China está percebendo a mensagem americana, de que a Ásia é da China, as américas são dos Estados Unidos e a Europa é dos europeus, não da Rússia.

A Rússia tem poder geopolítico, tem um grande exército e tem bomba atômica. Mas a Europa pode produzir bomba atômica rapidamente, com as capacidades da França e do Reino Unido, por exemplo. E a Alemanha tem uma capacidade financeira estupenda, ainda mais agora que diminuiu as restrições para o gasto público.

Esse é o mundo que a política de Trump está criando. Ele está dando de bandeja a Ásia para China. O que estamos vendo agora? Reuniões entre Japão, China e Coreia para discutir comércio. O Japão e a China eram inimigos até há pouco. Agora, há toda uma conversa ali. A China não vai abandonar a globalização, que só vai mudar de aspecto.

O mundo vai aproveitar esse espaço dado pela sociedade americana, que votou no Trump, e os Estados Unidos vão perder. Temos que lembrar que os Estados Unidos correspondem a 15% do comércio internacional. Não é nem perto de 50%. Essa política vai ser ruim para todo mundo, mas talvez seja pior para eles.

E tem aquele ditado muito brasileiro que eu adoro: “Jacaré que dorme na beira do rio vira bolsa de madame”. Ninguém vai querer virar bolsa de madame. E vão começar a fazer negócio, vão se virar. Creio que, no final das contas, o mundo vai ser mais pobre e haverá menos comércio entre os Estados Unidos e o resto do mundo. Mas vai haver mais comércio entre outras partes do mundo.

MARCELLO ESTEVÃO, 59

Diretor-gerente e economista-chefe do IIF, é Ph.D. em economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) e professor adjunto na Georgetown University. Foi diretor de Macroeconomia, Comércio e Investimentos do Banco Mundial, membro do Fed e do FMI e secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda no governo Michel Temer.

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