Julgamento de Bolsonaro pode ter 320 testemunhas, sessões extras e prazos apertados

primeira turma

A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade tornar réus o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) por tentativa de golpe de Estado, além de outras sete pessoas, entre elas, o general Walter Braga Netto. Agora, o processo entra na fase chamada de instrução penal, que envolve a coleta de provas, a realização de diligências, como perícias, e o depoimento das partes e testemunhas — que podem chegar a 320 no total.

Para juristas com trânsito na Corte ouvidos pelo Estadão, porém, as etapas da fase de instrução do processo — geralmente a mais demorada — devem ser encurtadas por meio de estratégias e precedentes já adotados pelo Supremo, especialmente durante o julgamento do Mensalão, em 2012, o mais longo da história Corte: durante pouco mais de quatro meses foram realizadas 53 sessões dedicadas exclusivamente a analisar a situação dos 38 réus.

O esquema do Mensalão consistia no pagamento de mesadas a parlamentares para garantir apoio à base governista do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entre 2003 e 2004. Mais de duas dezenas de políticos e empresários foram condenados por corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro e outros crimes.

Os depoimentos das testemunhas são uma das etapas que mais podem prolongar o andamento do processo. O criminalista Pierpaolo Bottini explica que cada réu tem direito a até oito testemunhas por crime imputado, o que pode levar a um total de até 320 pessoas ouvidas ao longo dessa fase (oito testemunhas para cada um dos cinco crimes imputados a cada um dos oito réus).

Uma delas será o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), que aceitou depor para defender o ex-presidente. “Acompanhei Bolsonaro ao longo da Presidência e tive o privilégio de ser um dos ministros mais próximos dele. […] Eu nunca vi o presidente armando para fazer algo que estivesse fora da Constituição”, declarou ele no podcast Inteligência Ltda no início da semana.

Bottini avalia que o Supremo deverá designar juízes federais para conduzir os depoimentos, a exemplo do que ocorreu no Mensalão, para dar mais celeridade à tramitação. “Isso será um diferencial considerável, diminuindo consideravelmente o tempo desse processo. Imagina, antes, o tempo que levava para ouvir testemunhas em diferentes Estados. Com muitos depoimentos, iria demorar muito mais”, afirma.

O professor de processo penal e criminalista Aury Lopes Jr. também destaca que os ministros da Primeira Turma podem designar uma equipe específica dentro de seus gabinetes para se dedicar exclusivamente à análise da denúncia e às demais etapas do processo. O grupo, formado por assessores jurídicos e técnicos, pode atuar na revisão prévia de documentos, elaboração de pareceres e organização dos autos.

“Essa prática já ocorreu anteriormente no STF. É um caso complexo que, em circunstâncias normais, não seria julgado neste ano, mas acredito que será, dada a relevância do tema e dos envolvidos”, afirmou.

Aury acrescenta que o Supremo pode organizar sessões semanais dedicadas exclusivamente ao julgamento do caso, replicando a estratégia adotada no julgamento do Mensalão. “Pode ser feito isso”, afirma.

Outro fator com potencial para alongar o processo é a produção de provas por parte dos réus. O criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro, conhecido como Kakay, avalia que não há margem para novas diligências, dada a abrangência e robustez das provas apresentadas na denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR).

O jurista aponta que questões que poderiam ser levantadas para adiar o julgamento, como a competência do Supremo, já foram analisadas em casos semelhantes, como nos processos contra os acusados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.

“Já foram julgadas centenas de pessoas do [ato] de 8 de janeiro, e todas as questões que normalmente seriam levantadas já foram decididas. Caso sejam suscitadas novamente, o Supremo resolverá rapidamente. Não tenho dúvida de que os ministros querem julgar ainda este ano”, afirma Kakay.

Ele ressalta que os prazos processuais estão hoje mais objetivos e rigorosos, o que contribui para evitar manobras protelatórias. Segundo o criminalista, o Supremo tem adotado uma postura mais firme na condução dessas ações.

“Há um esforço claro para garantir a efetividade do processo, especialmente após o Mensalão. Os prazos estão mais definidos, os ministros têm dado menos margem para recursos meramente dilatórios e há uma disposição evidente de evitar atrasos desnecessários”, avalia.

Bolsonaro critica rapidez do Supremo

No campo político, a reação de Bolsonaro também já começou. O ex-presidente passou a comparar seu caso ao do Mensalão antes mesmo de virar réu. Em uma entrevista na segunda-feira, ele disse que o processo levou sete anos para ser concluído, considerando que o escândalo estourou em 2005 e o julgamento principal foi finalizado em 2012. O período, na verdade, é ligeiramente menor, pois a denúncia foi apresentada pela PGR em março de 2006.

“Por que essa velocidade, para que esse atropelo? Eu não sendo julgado [até a eleição], e o certo é eu não ser julgado e respeitar os prazos, aos 48 do segundo tempo eu entro com meu registro de candidatura. O TSE em duas semanas decide [sobre a inelegibilidade]”, disse o ex-chefe do Executivo no podcast em participou ao lado de Tarcísio.

O objetivo de Bolsonaro é evitar que o julgamento ocorra até a eleição de 2026 para que ele tenha mais chances de conseguir se candidatar a presidente. O ex-presidente planeja reverter sua inelegibilidade no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) — que viu abuso de poder político em reunião com os embaixadores em 2022 —, mas uma eventual condenação no STF pela tentativa de golpe também o deixaria inelegível, em tese, por causa da Lei da Ficha Limpa.

O advogado criminalista Renato Stanziola Vieira aponta que não é possível cravar neste momento que o processo esteja correndo mais rápido ou mais devagar do que o normal e que o rito tradicional será seguido: primeiro serão ouvidas as testemunhas de acusação, depois as defesa e em seguida os interrogatórios dos réus, começando pelo delator e tenente-coronel Mauro Cid. Novas provas podem ser juntadas até a sentença, com espaço para que tanto a acusação quanto a defesa se manifestem sobre elas.

“Ninguém deseja que demore muito. E não é por uma questão política: um prazo razoável de julgamento é um direito de todos. Em princípio, os esforços para que o julgamento não se prolongue no tempo são bem vistos, principalmente quando há réus presos, como é o caso do general Braga Netto”, disse ele.

Vieira considera natural a utilização de juízes instrutores para colher depoimentos e a realização de sessões extraordinárias diante da complexidade do caso. Zanin, presidente da Primeira Turma, já sinalizou que adotará uma condução ativa do processo, ao reservar sessões exclusivas para o recebimento da denúncia nesta semana.

Além de Bolsonaro, Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil, e o ex-ajudante de ordens Mauro Cid, a Primeira Turma tornou réus Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional), Alexandre Ramagem (ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência), Anderson Torres (ex-ministro da Justiça), Almir Garnier (ex-comandante da Marinha) e Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa).

Todos os oito são acusados dos crimes de organização criminosa (pena de 3 a 8 anos, podendo chegar a 17 com agravantes citados na denúncia), abolição violenta do Estado Democrático de Direito (pena de 4 a 8 anos), golpe de Estado (pena de 4 a 12 anos), dano qualificado com uso de violência e grave ameaça (pena de 6 meses a 3 anos) e deterioração de patrimônio tombado (pena de 1 a 3 anos).

A PGR denunciou 34 pessoas no total, mas os julgamentos serão separados. Os oito que viraram réus são parte do “Núcleo 1″. O STF marcou para o dia 8 de abril a análise das denúncias contra 12 pessoas acusadas de integrarem o chamado “Núcleo 3″, formado por militares da ativa e da reserva do Exército e um policial federal. Os acusados do “Núcleo 2″ serão julgados no dia 29 de abril — no grupo estão o general Mário Fernandes e o ex-diretor da Polícia Rodoviária Federal, Silvinei Vasques. O “Núcleo 4″, que de acordo com a PGR criou e propagou informações falsas contra o processo eleitoral, será julgado no dia 6 de maio.

Quais são os próximos passos ?

Após a fase de instrução processual, inicia-se o prazo para as alegações finais, momento em que as defesas podem contestar as provas apresentadas pela PGR e levantar argumentos em favor da inocência dos réus.

Na sequência, o relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, elabora seu voto e apresenta o relatório. Não há um prazo definido para essa análise nem para a data do julgamento após sua manifestação. Concluída essa etapa, o processo estará pronto para ser levado ao plenário da Primeira Turma do STF.

Ao fim do julgamento, cabe a absolvição ou condenação dos réus para cada um dos crimes imputados. Em caso de condenação, os ministros do STF farão a dosimetria penal, que é o cálculo da pena da sentença, levando-se em consideração os atenuantes e agravantes previstos na lei.

Estadão Conteúdo

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