Conselho Federal de Medicina cria comissão de espiritualidade para entender impacto da fé na saúde

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ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Sabe aquela expressão popular, “reza que passa”? Não que o CFM (Conselho Federal de Medicina) proponha algo perto de colocar a recuperação de um paciente nas mãos de Deus ou qualquer variante divina, a depender da crença pessoal. Mas a recente criação da Comissão de Saúde e Espiritualidade sinaliza que, para a entidade que fiscaliza a prática médica no Brasil, ter fé na vida pode ser uma parte vital do tratamento.

Não se trata de atestar intervenções sobrenaturais no estado clínico de alguém. O que importa é medir até que ponto acreditar nelas impacta a nossa saúde. Spoiler: vários estudos indicam um saldo positivo —e falamos aqui daqueles revisados por pares científicos, ou seja, passíveis de serem levados a sério.

A nova comissão vai estudar, segundo o psiquiatra Bruno Paz Mosqueiro, professor da UFRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e parte do grupo, “qual é o efeito nas pessoas que vão semanalmente, por exemplo, a um encontro [religioso] ou que têm o hábito de fazer suas preces, orações, uma meditação”. Tudo isso pode afetar a saúde do indivíduo.

“Assim como a gente estuda qual é o impacto da atividade física uma, duas, três vezes por semana. É mais um dos hábitos da experiência humana que podem e devem ser investigados pela ciência”, afirma.

Pacientes entrosados em práticas espirituais costumam relatar níveis mais baixos de estresse e ansiedade, e daí em diante é ladeira acima: se estiverem, digamos, lidando com uma doença, a recuperação tende a ser mais rápida, e a resposta ao tratamento melhora.

Pesquisas também apontam que a presença de capelães e programas de apoio espiritual em hospitais podem reduzir o tempo de internação e deixam pacientes mais bem-dispostos.

Outro ponto a se considerar: níveis mais parrudos de envolvimento religioso são associados a menos quadros depressivos e menos abuso de álcool e drogas. O comportamento suicida também cai.

Mosqueiro lembra de uma senhora que atendeu no passado, “com uma depressão muito grave”. Acabou sendo internada. “Ela falou assim, ‘olha doutor, se não fosse a minha fé, talvez eu já tivesse, de alguma forma, tirado a minha própria vida’.”

Ser espiritualizado não necessariamente implica numa filiação religiosa, embora isso possa acontecer.

Na literatura acadêmica, a espiritualidade contempla a busca do ser humano por algo sagrado e transcendente, indo muito além do monoteísmo cristão que calibra a religiosidade nacional. É aquele sentimento de que há algo além do mundo convencional, que pode ser traduzido na forma de um Deus ou vários, e também outras experiências tidas como sobrenaturais. A oração no culto evangélico e o ebó em religiões afrobrasileiras fazem parte desse mesmo pacote, por exemplo.

No Brasil há ainda um fenômeno que podemos chamar de self-service ecumênico, que é a pessoa que declara uma religião mas constrói para si outros puxadinhos espiritualizados. Ela vai na igreja católica e no centro espírita, medita, assiste no celular à pregação evangélica e joga flores para Iemanjá no Ano-Novo.

A escola de saúde pública de Harvard se interessou pela correlação entre crer e sarar. Pesquisadores da universidade publicaram um artigo no prestigiado Jama (The Journal of the American Medical Association) mostrando que participar de comunidades espirituais aumenta as chances de levar uma vida mais saudável e também aprimoram a reação do corpo a doenças graves.

Os autores sugerem ainda que questionar quem está sob cuidado sobre o tema deve constar na boa prática médica. “Ignorar a espiritualidade faz com que os pacientes se sintam desconectados do sistema de saúde e dos médicos que tentam cuidar deles”, diz Howard Koh, professor de Harvard com passagem no departamento de saúde do governo Barack Obama.

O CFM não está comprando a ideia de que orar é sempre o melhor remédio, segundo Rosylane Rocha, a presidente da comissão dedicada ao assunto. “O que motivou o conselho foi que a própria OMS [Organização Mundial de Saúde] vem admitindo o conceito de saúde como o completo bem-estar físico, mental, social e espiritual”, afirma. “Alguns congressos de medicina incluíram o tema na grade científica, e vários médicos têm se debruçado em estudos sobre os efeitos da fé na evolução clínica e na cura.”

Pesquisadores não descartam que a espiritualidade influencia para o bem, mas por vezes também para o mal. O zelo médico não pode, em hipótese nenhuma, ser condicionado a proselitismos, que é o que se vê com alguma frequência em comunidades terapêuticas para dependentes químicos —aquela história de que, para receber guarida técnica daquele lugar, é preciso rezar certa cartilha religiosa.

O fervor religioso também pode provocar efeitos colaterais perigosos, como a recusa de um protocolo clínico. Basta lembrar que Testemunhas de Jeová podem negar a transfusão de sangue, direito assegurado pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

Para a microbiologista Natalia Pasternak, coautora de “Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem ser Levados a Sério”, é bem-vindo apoiar a pesquisa científica sobre fatores que incrementam a qualidade de vida. Só não dá para se valer “dessa espiritualidade genérica para abrir as portas da medicina a terapias sem base em evidência, como se fossem tratamentos ou medicamentos”.

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