Pesquisa, pra que te quero?

(Foto: Gerd Altmann/ Pixabay)

O último seminário organizado pelo Observatório da Ética Jornalística (objETHOS/UFSC), em setembro de 2024, provocou-me várias reflexões sobre o Jornalismo, assim como deve ter acontecido com os presentes e com quem pôde assistir aos debates e apresentações. Os profissionais e pesquisadores convidados trouxeram sua visão e experiência acerca do tema escolhido: “O papel do jornalismo na sociedade: a crítica de mídia nos últimos 15 anos”, contudo, as perguntas e comentários da audiência foram além.

O professor Carlos Locatelli, Coordenador do Programa de Pós-graduação em Jornalismo (PPGJOR) da UFSC, trouxe diversas questões e ponderações em seu comentário. Uma que me chamou particular atenção foi sobre o tema central do seminário e seu papel nas pesquisas de jornalismo. Um pouco de brincadeira, ele disse: “Talvez nós devêssemos mudar o nome do nosso programa para ‘Programa de Pós-graduação em Crítica de Mídia’. Todos nós que pesquisamos, todos os nossos trabalhos do curso de pós-graduação em Jornalismo são de crítica de mídia. Não há trabalhos funcionalistas, não há quase ninguém pesquisando como aperfeiçoar o Jornalismo”. Em seguida, já emenda um dos motivos: “Porque esse jornalismo hegemônico é refratário. Refratário à ciência, ao trabalho acadêmico, é refratário por conta do oligopólio”.

Em outras discussões, no PPGJOR ou fora dele, tais questões já tinham vindo à tona e eu já havia refletido sobre, tentando dirimir várias dúvidas. Primeiramente, será que realmente todas as nossas pesquisas são sobre crítica de mídia? Há diferentes acepções do conceito, mas, entendendo que as pesquisas irão analisar determinado objeto do Jornalismo – seja uma cobertura, comportamento, tendências, etc. – assume-se que farão crítica àquilo pois, a princípio, os parâmetros utilizados são acadêmicos e, via de regra, normativos.

Ademais, critica-se o Jornalismo ou parte dele por este estar desviando de seu propósito. E quais seriam estes? Bem, a princípio, são normativos, mas isso pode ser algo bom. Muitas vezes, o Jornalismo é criticado por desviar-se do seu dever democrático ou mesmo do básico, que seria informar.

Ainda sobre o seminário, um pouco depois, a pesquisadora Andressa Kikuti trouxe sua reflexão sobre o tema da crítica, concordando com o professor Rogério Christofoletti – um dos palestrantes – sobre a relevância de fazer crítica de mídia propositiva. “Acho importante a gente fazer crítica de mídia propositiva. Ontem mesmo eu comentei com um outro professor que a gente é bom de diagnóstico, mas ruim de proposição, tanto na pesquisa, como talvez na crítica também. Mas penso nas dificuldades de fazer isso, como fazer crítica propositiva sem estar tão atrelado a uma perspectiva normativa”, comentou Andressa.

Juntando as reflexões dos pesquisadores às minhas, penso que a normatividade da academia não é de todo ruim. A universidade é um espaço de reflexão crítica, mas também onde se aprendem ofícios, profissões e suas respectivas éticas. A ética é normativa, assim como regras profissionais. É bom e útil que assim o seja, mesmo sabendo que o “dever ser” é diferente da realidade.

Já as características de pesquisa variam por áreas de conhecimento, bem como a refração às mesmas difere a depender do campo ou profissão. Deve haver investigações com análises sobre as características das próprias pesquisas de determinadas áreas (seriam metapesquisas?) – e espero que haja. Mas, trago minha experiência pessoal e profissional. É mais comum ver pesquisas práticas e/ou aplicadas em áreas como as Exatas e da Saúde. Em pesquisas de Matemática Pura, por exemplo, o pesquisador deve tentar desvendar um problema já existente neste campo.

Pesquisas em Jornalismo se diferem por geralmente fazerem um diagnóstico de determinado objeto, como mencionado. Destas pesquisas podem até surgir um produto – como uma revista, por exemplo – mas distingue-se do que é visto em outras áreas. Já entrevistei pesquisadores da área de Química cujos doutorados, mesmo acadêmicos, exigiam que um produto (como nova fórmula, material, etc.) surgisse da pesquisa.

Também há questões no Jornalismo que são imanentes, porém, raramente se veem pesquisas tentando desbravá-las, como acontece na Matemática, por exemplo. Contudo, mesmo com as características ou exigências de determinadas áreas, nada garante que produtos e diagnósticos serão implementados pelo campo, incorporados ao serviço público ou absorvidos pelo mercado.

Quem acompanha notícias e divulgações científicas de universidades ou institutos de pesquisa sabe que frequentemente há novidades, patentes, descobertas incríveis sendo feitas, porém, estas são desconhecidas pela maioria. Também já entrevistei pesquisadores de áreas como Biologia e Farmácia que desenvolveram medicamentos utilizando plantas locais que são muito mais eficientes e, muitas vezes, mais baratos do que compostos amplamente usados no mercado. Por que descobertas assim não são implementadas para o grande público? Está fora da minha área de expertise. Entretanto, pode ser o mercado refratário, razões econômicas e comerciais, desconhecimento etc.

Além do mercado jornalístico hegemônico ser refratário a pesquisas, há uma separação muito maior entre academia e profissão neste campo do que se vê em outros. É comum profissionais – e, pasmem, até estudantes – dizerem que jornalismo só se aprende na prática, que a universidade não ensina nada. E este distanciamento não é “privilégio” brasileiro.

Voltando a pesquisas funcionalistas e proposições, já presenciei, na própria academia, críticas a pesquisas que propunham ações ao jornalismo. Não sei se isso acontece pela raridade ou pelo desejo de crítica analítica, mas vê-se que algum nível de refração não vem somente do mercado.

Doutorado, pra que te quero?

O professor Olavo Amaral analisou que as pesquisas de doutorado realizadas no Brasil atualmente têm seus méritos, porém, talvez seja hora de repensar a pós-graduação nacional. Além de os doutorados ainda serem realizados baseados em modelos do século XIX, seu principal objetivo é formar pesquisadores. Entretanto, apesar de o país querer abranger sua pós-graduação, não consegue absorver esta quantidade de pessoas, pois pesquisa é feita majoritariamente somente em universidades públicas.

Nisso, o Brasil se distingue de outras nações. Na Alemanha, por exemplo, onde fiz meu doutorado sanduíche, é muito comum pesquisadores serem disputados por empresas. Lá, conheci diversas pessoas com pós-graduação trabalhando na iniciativa privada. Um colega que terminou doutorado em Matemática me disse que a pós-graduação é vista com bons olhos pelas empresas pois, se alguém terminou tais estudos, é um indicativo que pode desempenhar bem seu trabalho. A impressão que se tem no Brasil é o contrário. Este não é um dado científico, mas é muitíssimo comum ver pessoas que não conseguiram trabalhar após o doutorado. Empresas não querem estes profissionais por não desejarem pagar mais ou creem que doutorado é algo abstrato, preferindo funcionários de “mão na massa”. Um total desconhecimento, para além de preconceito e visão retrógrada.

Vale salientar que os exemplos que vi na Alemanha eram todos da área de Exatas (computação, tecnologia e afins), onde há grande demanda de trabalho e carência de profissionais. Pelo que ouvi de acadêmicos e pesquisadores alemães, o mesmo não ocorre no Jornalismo. Não há um maior entrelaçamento entre jornalistas e pesquisadores da área. Tampouco é comum ver doutores nas redações. Entretanto, é comum neste e em outros países europeus passagens pelo ofício jornalístico antes de se enveredar na pesquisa.

As reflexões trazidas aqui são complexas e não serão resolvidas nem com uma tese, muito menos num comentário semanal. Mas arriscaria dizer que áreas como a Saúde têm mais ligação com pesquisas por dependerem dela para seu funcionamento, melhoria e pelas suas próprias regras internas e leis nacionais. Há, na comunicação, algumas tutelas estatais, mas o jornalismo não possui as mesmas legislações. Implementação ou mudanças em leis – a exemplo do que atualmente se propõe sobre a regulação das big techs – são permeadas e, muitas vezes, corrompidas pela extrema-direita, que pervertem conceitos como liberdade de expressão.

Como lembrou o professor Christofoletti ao final do debate, precisamos pensar de maneira diferente e “colocar a cabeça para fora da toca” e não achar que crítica de mídia é somente os textos que escrevemos, pois este são apenas uma parte do trabalho. “Para observatórios funcionarem como laboratórios, eles precisam radicalizar o diálogo. Precisamos criar formas de dialogar, porque o diálogo vai nos levar à depuração das ideias, à formação de consensos, à identificação de dissensos”, afirmou. O pesquisador citou o “objETHOS nas escolas” – projeto de extensão que leva reflexão sobre crítica de mídia a escolas de Ensino Médio na Região da Grande Florianópolis (SC), coordenado pelo professor Samuel Pantoja Lima – como um exemplo prático, assim como a proposição de políticas públicas que envolvam segurança de jornalistas.

Diálogo, algo básico na comunicação humana, parece algo difícil no país atualmente. A psicanalista Maria Rita Kehl foi criticada e “cancelada” pelo tribunal da Internet por afirmar justamente isso – falta de diálogo e não aceitação de dissensos. Políticos e algumas personalidades diariamente lançam mão da engenharia do caos e o jornalismo cai como patinho, repetindo-os sem reflexão. Exemplos recentes são declarações polêmicas do atual presidente estadunidense e do dono da Meta. Como afirmou o professor Wilson Gomes, trazendo uma metáfora sobre o debate público nacional, todo dia alguém joga diversas pedras no galinheiro, gerando caos, barulho e zero entendimento.

Quiçá o ethos arraigado de vigilante, quarto poder e embate com poderes públicos impeça o Jornalismo e jornalistas de dialogar com outros campos e poderes para buscar consensos e não só reportar dissensos. Enquanto isso, pesquisas podem buscar aperfeiçoar, propor criticar. Acima de tudo, buscar avançar os estudos do campo, andar para frente e não de lado. Pesquisar é preciso. E sua valorização dentro e fora do âmbito acadêmico é urgente.

Texto publicado originalmente em objETHOS.

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Juliana Rosas é Doutora pelo PPGJOR, jornalista e pesquisadora do ObjETHOS/UFSC.

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