Ausência: quando o luto materno é marcado pela desinformação e violências

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Por Danyelle Silva

Um tiro, o sopro do nascer e a queda que se tornou o trauma de uma vida e de uma dor infinita. Como diz a música de Chico Buarque “Que a saudade é o revés de um parto… A saudade é arrumar o quarto… Do filho que já morreu”.  A experiência do luto materno é, além dos versos do poeta, eterna.

Tive conversas emocionantes com mulheres fortes que tiveram um pedaço de seus corações machucados pelo luto. Uma delas é Juliene Matos Fernandes, 34 anos, fonoaudióloga e mãe do Isaac e do Miguel Fernandes da Cruz, que viveu por apenas 10 dias. Até hoje é desafiador para ela responder que só tem “um filho”. “Faz nove anos que perdi o Miguel, e eu ainda tenho dificuldade de responder essa pergunta”. 

Antes da chegada do filho caçula, Juliene já era mãe de um menino transgênero, o Isaac. “Para mim, é muito real que tenho dois filhos. Quando respondo assim, questionam sobre o segundo. Eu tenho que dar toda a explicação de que ele não está mais aqui”. 

O tempo

Através da distância  de uma tela para a entrevista, a mãe cruza os braços, como se fosse uma proteção para o coração. O olhar se perde em meio às lembranças. Antes de continuarmos, ela me alerta sobre sua confusão com as datas na semana da morte do pequeno Miguel, já que o calendário se perdeu em sua mente. No entanto, o sentimento de perda vivida é como se fosse recente. 

“Acho que esse processo nunca vai passar. Eu vou ter 60 anos e ainda vou sentir a perda do Miguel como se tivesse ocorrido no final de semana passado”. Como se lhe fosse arrancado um pedaço de si. 

Faz lembrar os versos do Chico Buarque: “Oh, pedaço de mim/Oh, metade afastada de mim/Leva o teu olhar/Que a saudade é o pior tormento/É pior do que o esquecimento/É pior do que se entrevar”.  

Juliene é uma mulher de cabelos curtos e castanhos, que usa óculos e vestia um moletom branco no dia da entrevista. Ela se protege do tempo frio que fazia naquela manhã no bairro do Capão Redondo, na periferia da cidade de  São Paulo. Através das lentes retangulares de seus óculos, é possível testemunhar a tristeza que a acompanha.

Dores raras 

Além da dor da alma de agora, desde jovem, Juliene sofre com a sensibilidade de sua pele. Ela enfrenta desafios diários com os cuidados para tratar as bolhas que já estão no seu corpo e as que surgem com o mínimo de atrito que ela possa ter. Os cuidados para a limpeza dessas feridas são tão dolorosas quanto as de queimadura de 2º grau , sendo necessário o uso de remédio para dor. Ela convive com uma doença rara chamada epidermólise bolhosa, que é uma condição genética, hereditária e rara que causa a formação de bolhas na pele, tanto interna quanto externamente, e que não tem cura e são semelhantes a queimaduras. 

A raridade deixa a pele sensível e frágil.  A doença foi a causa da morte de seu filho, pelo o que consta na certidão de óbito. Isaac, o mais velho, possui o mesmo fator genético da mãe e do irmão. A família teme que o menino mais velho também tenha complicações mais sérias

O novo sonho

Aos 16 anos, Juliene engravidou do primeiro filho, enfrentando o primeiro obstáculo de ser mãe adolescente com uma doença rara e com falta de informação. “Quando eu engravidei ninguém sabia exatamente o que ia acontecer comigo, pela falta de conhecimento que  ainda era muito grande”. Ela relembra que foi aconselhada a se despedir de sua família no dia do parto. “Eu achei que não voltaria do primeiro parto”. A preparação para uma possível perda causou mais estresse na família. Isaac nasceu com poucas lesões da epidermólise bolhosa e, graças a isso, logo foi para casa com os cuidados necessários. 

Sete anos depois, Juliene casou e se especializou como técnica de enfermagem para cuidar melhor do filho mais velho e se sentiu preparada para ser mãe novamente. “Quando engravidei do Miguel, achei que ia dar tudo certo porque agora eu já tinha conhecimento. Achei que as coisas seriam fáceis na verdade.” 

Preocupada, Juliene questionou o médico obstetra sobre a possibilidade da nova gravidez ser de risco e do novo bebê nascer com a síndrome rara. O obstetra teria respondido que “um raio não cairia duas vezes no mesmo lugar”. Ao contar-me Juliene dá uma risada irônica e comenta “esquecemos aí a genética”, 

Histórico

Segundo a Ana Paula Caio Zidório, coordenadora da Equipe Multiprofissional para Atendimento das Pessoas com Epidermólise Bolhosa do HUB (Hospital Universitário de Brasília), já existem pesquisas que haveria possibilidade de detectar a epidermólise bolhosa pelo pré-natal, quando na família há histórico da doença rara. 

Contrariando o médico obstetra  que arriscou a tese de que “dois raios não caem no mesmo lugar”, a coordenadora da equipe do HUB ressalta a importância do acompanhamento com o geneticista para esses casos raros para não haver falsas informações. Ela explica que as porcentagens de um feto desenvolver o fator genético da epidermólise bolhosa variam entre os tipos dominante e recessivo. 

“No caso da epidermólise bolhosa (EB)  dominante, existem 50% de chances de cada filho nascer com a condição, e essa probabilidade se aplica a cada gestação. Não é porque um filho já nasceu com EB que a chance muda, é 50% em cada gravidez. Já na doença  recessiva, a chance é de 25% por gestação”. 

Ela também apontou um terceiro cenário de desenvolvimento da doença. “Existe a possibilidade de ocorrer uma alteração genética espontânea, mesmo sem histórico familiar, e a criança pode nascer com EB devido a essa mutação.”

Mesmo com seu instinto materno dizendo que o médico estaria equivocado, Juliene se apegou à falsa informação e se preparou para a chegada do filho. Fez chá de bebe, preparou o filho mais velho e toda a família para a vinda do caçula. “A grande diferença de uma gestação para outra é que a do Isaac foi uma surpresa. Eu era mãe adolescente, mas do Miguel eu planejei, decoramos o quarto com tudo novo. A gente fez chá de bebê, escolheu o nome. Eu vivi aquilo que toda mulher quando casa quer ter, uma família”. 

Juliene Matos, durante o chá de bebê do filho Miguel/ Arquivo pessoal.

Juliene lembra que sua gestação foi “quase perfeita”. Ela disse que passava muito mal, mas tinha bastante suporte da família. Porém, a preparação da família não contou com o despreparo da equipe médica no momento mais esperado: o parto. Mas, o que estaria por vir mudaria a vida da família.

O nascimento 

No Hospital Regional Sul de São Paulo, no dia 1º de setembro de 2015 às 20h47, Miguel veio ao mundo, como relata a mãe. Neste momento, a história é contada de forma mais acelerada, com detalhes pontuais como se fosse uma tentativa de fuga. “Na maternidade em que ele nasceu, ninguém prestou atenção no meu cartão de pré-natal e ninguém me ouviu dizendo que ele podia nascer com a epidermólise. Ninguém perguntou nada”. Para ela, seria necessário verificar os dados registrados durante o período de pré-natal.

Às pressas, ela foi levada para o centro cirúrgico. O que deveria ser um momento inesquecível para aquela mãe, transformou-se em um “pesadelo”. Juliene lembra que, quando Miguel nasceu, a médica que estava fazendo o parto pegou o recém-nascido pelo calcanhar e, de maneira histérica, questionou a todos que estavam ali. “ O que é isso? o que é isso?”, referindo-se às bolhas de queimaduras no pé da criança. Então, neste momento, a mãe de Miguel percebeu que ninguém estava ciente da condição de doença rara. 

Juliene disse que, naquele momento, ficou assustada, e que só teve tempo de pedir para não colocarem o seu filho na incubadora, antes de desmaiar.

“Me lembro de falar para não colocar ele na incubadora, mas eu desmaiei. Quando acordei ele já tinha ido para a incubadora há 37 graus de temperatura, onde ele sofreu mais queimaduras”. 

Recém nascido, Miguel olhando para sua mãe/ Arquivo pessoal.

Negligência e desinformação 

Miguel nasceu com uma bolha em cada calcanhar, mas, por causa do tempo que ficou na incubadora, as feridas aumentaram. “Ele ficou sem a pele de toda a parte posterior do corpo, do alcance da cabeça até os pés. Eram características de grandes queimados”, diz a mãe. “Ele nasceu muito grande, então ele batia o pé no vidro da incubadora e aquilo ia tirando a pele do pé dele”. 

A coordenadora Ana Paula Zidorio explica que a melhor forma de tratar recém-nascidos com características da epidermólise é com um tratamento de adaptação em temperatura ambiente, mas que não é ideal colocar em incubadoras. 

“O ideal que seja feito é pedir orientações ao hospital ou médico de referência. Ela ainda diz que as informações são de fácil acesso pelo site da Federação Brasileira das Associações de Doenças Raras.  

Incubadora 

Juliene recorda que os dias após o nascimento do filho foram uma luta para tirá-lo da incubadora, e que o instrumento causou danos explícitos ao recém-nascido. Ela diz que a médica, em nenhum momento, quis escutá-la e que, por suas próprias conclusões, definiu que Miguel estava com infecção e iniciou o tratamento. “Ela começou a colocar antibiótico muito forte para dor e profiláticos – medicamento preventivo de doenças, como soros e vacinas ”. 

Pela própria vivência, Juliene solicitou ajuda de especialistas em doenças raras que entraram em contato com o hospital.”Mandaram uma médica de fora ver o Miguel, e aí foram identificados todos os erros”. Um dos erros mais graves que fizeram com a criança foi colocar luvas de látex com água dentro da incubadora quente, com a justificativa de esfriar. No entanto, ocorria o inverso, por conta da alta temperatura da incubadora, a água fervia e o látex grudava no corpo do menino causando mais bolhas.

“Pessoas com EB não podem colocar coisas que grudam na pele, e no Miguel foi colocado esparadrapo e um pique para segurar o acesso do soro, sem minha autorização, sem eu saber de nada”, afirma Juliene. 

Juliene relata ter sofrido pressão emocional da equipe médica. “Ninguém sabia o que fazer e eu me lembro das poucas vezes que subi na UTI Neonatal, sofria muita pressão das médicas porque eu pedia para tirarem o Miguel da incubadora e elas negavam”. Ela relata que uma médica a ameaçou de proibir a entrada dela na na UTI porque o garoto ficaria agitado com a presença da mãe

Memórias arrancadas  

Juliene relata que, quando Miguel nasceu, ela foi proibida pela equipe médica de segurar seu filho e que não conseguiu amamentá-lo. “Quando ele nasceu, eu não pude pegar ele no colo e não amamentei. Tudo bem que amamentar ele não ia conseguir por conta das bolhas internas na boca dele, mas queria pelo menos o contato mãe e bebê”, emociona-se. “Eu não pude tocar nele nos dois primeiros dias de vida dele”.

Depois de três dias de internação, Miguel recebeu alta mas ainda tomando o antibiótico para tratamento de infecção. 

Em casa 

Com a primeira batalha conquistada, Juliene foi para casa com o seu bebê para, enfim, conseguir cuidá-lo devidamente. Ao completar sete dias que estava em casa, a família recebeu a visita da enfermeira do posto de saúde local para fazer o acompanhamento do recém-nascido, mas o que era para ser apenas uma consulta de rotina, se tornou uma tragédia.

“Foi no meu quarto. Bem na hora da visita da enfermeira do posto de saúde, ele teve uma parada cardíaca”, diz Juliene. No momento do mal estar do filho, ela se sentiu paralisada, sem saber o que fazer. 

A agente de saúde logo chamou o SAMU que levou Miguel para o hospital. “Ele ficou 12 horas e faleceu no dia seguinte. Depois de seis paradas cardíacas”, recorda a mãe do Miguel. 

“Ali na quinta parada cardíaca, eu entendi que tinha acabado”. Juliene diz que o filho ficou muito machucado na quarta parada. “Eu não via mais vida no rosto dele, mas mesmo assim eu ainda quis acreditar que talvez desse certo”. Juliene, emocionada, recorda que o médico falou para ela se despedir do Miguel. “Se despede do seu filho porque ele vai parar de novo e a gente não vai ter o que fazer, ele não vai voltar”. 

Naquele momento, o tempo parou para Juliene. Ela se recusava acreditar que era o fim. “Não adiantava mais eu gritar, brigar, exigir e pedir. Acabou. Eu sabia que não ia levar mais o Miguel para casa”. 

Segundo o laudo hospitalar, a causa da morte teria sido anemia e sepse causada por bactéria. 

Passado revirado

Para essa reportagem, solicitei documentos para a mãe, como certidão de nascimento e a de óbito. Juliene revelou que teve dificuldade em revirar o passado. 

“Eu sempre conto do Miguel sem me emocionar tanto, porque conto como se estivesse contando uma história avulsa, mas rever esses documentos deixam claro que é a minha história”.

Na certidão de óbito, consta que a epidermólise bolhosa foi a causa da morte, mas Juliene afirma que o filho de 10 dias, morreu por negligência hospitalar e pela ignorância. “Além da negligência da equipe médica, o que matou o Miguel foi a falta de conhecimento. Foi achar que a doença era uma infecção que se resolveria com antibiótico na veia e provavelmente ele adquiriu essa bactéria do pique do cateter central”.

Juliene lamenta que essa violência tenha acontecido com o filho em 2015. “Eu nasci em 1990. Não tinha internet, mas nada disso aconteceu comigo. Eu lamento que, mesmo 20 anos depois, temos evoluído tão pouco”. 

Perdas

A dor de perder um filho é uma experiência que abala a  família, Para Juliene, essa tragédia não apenas partiu o coração, mas também levou ao fim do seu casamento. Enquanto Juliene tentava se reerguer, seu ex-marido buscou no álcool um meio de fuga. “Quando essas coisas acontecem, ou o casal se une muito ou se separa de uma vez. No nosso caso, a gente se separou”, reflete. 

Juliene ainda enfrentou a turbulência ao tentar explicar para o filho de sete anos, Isaac, o porque voltou para casa sem o irmão caçula. “Até hoje para o meu filho é bem difícil, porque eu não tinha força para falar para ele o que tinha acontecido”. Ela recorda que a morte do Miguel afetou significativamente o Isaac que, para aliviar a dor de sua mãe, regrediu no desenvolvimento e agia de forma infantil. 

“Ele já sabia ler e escrever, e voltou a falar e agir como bebê”. Na época, Isaac recebeu acompanhamento psicológico, e os especialistas explicaram para Juliene que essa regressão foi a forma que Miguel encontrou de protegê-lá. “Ele queria ser o meu bebê para eu não sofrer”. 

Segundo a psicóloga Simone Lavorato, especialista em luto, a dinâmica emocional em famílias enlutadas é profundamente complexa. “Muito marcante, isso acontece com frequência”, diz ela. E ressalta que a criança, ao perceber o sofrimento da mãe, tenta inconscientemente aliviar essa dor. 

Esse impulso não é uma tentativa consciente de ocupar o lugar do irmão mais novo, mas sim um desejo de suprir a ausência e a tristeza. À medida que o filho adota comportamentos para confortar a mãe, ocorre um atraso em seu desenvolvimento, pois ele se dedica a aliviar a dor dela. 

Isaac fez tratamento psicológico e após um mês voltou a agir de forma saudável. Juliene diz que só conversou com o filho uma única vez sobre a morte de Miguel, por ser um tema sensível para a família. “Demorei muito para ter uma conversa com o Isaac. Ele me disse que tem medo por ter a mesma doença e achava que também iria morrer”

Bastante emocionada, Juliene reflete que, além de perder o filho, sofreu outras perdas e diz que seu único arrependimento é de “não ter lutado mais pelo Miguel”. “Eu perdi muito. Perdi meu filho, meu casamento e minha profissão. E essas consequências não têm volta”. 

As feridas vermelhas são bolhas causadas pela epidermólise bolhosa/ Arquivo Pessoal

Consultado, o Hospital Regional do Sul de São Paulo não respondeu às questões sobre o tratamento do menino no dia do nascimento.

Dia do aniversário 

A cerca de 1021 km de distância de São Paulo, na região administrativa de Planaltina, a dona de casa Aurineide Lopes Lima compartilha de uma dor semelhante à de Juliene. Na manhã do dia 20 de fevereiro de 2020, após comemorar o aniversário de 18 anos do filho mais velho Maykon Douglas Ribeiro, Aurineide recebeu a pior notícia de sua vida, seu filho foi assassinado. 

Perguntei como tinha sido aquela manhã. Ela descreveu que Douglas tinha lhe acordado avisando que sairia com o tio para ir em uma cachoeira da região para continuar as comemorações. Disse que não demoraria, já que pretendia fazer um churrasco à pedido do tio. “Eu estava no banho quando bateram no meu portão. Demorei para abrir. Quando saí, era um dos meninos que trabalhavam com o meu marido”. 

Um policial matou seu filho, disse o rapaz

Nesse momento, a dona de casa, de 46 anos, recorda que ouvir essas palavras foi um choque incomparável . “Botei a mão na cabeça e gritei pelo meu filho mais novo, Lucas”. 

Após a notícia, Aurineide diz não se lembrar mais de nada. Como se tivesse dado um branco. 

No dia da entrevista ela vestia uma blusa com uma foto do filho sorridente com o texto: “Justiça por Maykon Douglas”. Sua fisionomia é de uma mulher imersa na tristeza e desgastada pelo sofrimento. 

Com os  olhos cobertos por lágrimas as respostas surgem curtas, mas com lembranças vivas. “Ele estava tão feliz naquele dia. Dançou muito no aniversário”. 

Ela recorda que ainda viu o filho no local do crime, um posto de gasolina, na BR-020. “Quando eu cheguei lá, tinha uma ambulância do Corpo de Bombeiros. Eu estava chorando e corri até ele, mas a polícia disse que não era para eu mexer nele para não atrapalhar a perícia”. 

A dona de casa disse ainda que um policial militar acusou seu filho de estar armado e ter apontado a arma para a polícia. “Eles inventaram que ele estava com uma arma “, acusa.

Na época, a Polícia Rodoviária Federal (PRF) declarou para imprensa que durante uma abordagem a um veículo junto com a Polícia militar, pararam o carro em que Douglas estava. Segundo a corporação, um agente da PRF atirou contra o jovem porque ele teria saído do carro com uma arma em punho. 

No entanto, a polícia ainda disse para a imprensa que o garoto, na verdade, estava com um “simulacro fiel de pistola modelo PT840”, ou seja, uma arma falsa. Aurineide disse que o filho não tinha uma arma falsa. 

Perguntei para ela como era a personalidade do Douglas, e pela primeira vez vi um sorriso, mesmo que discreto. “Ele era muito carinhoso, trabalhador, prestativo e gostava de dançar. Só pensava em trabalhar e gostava de cavalos”, descreveu. O garoto trabalhava em um haras próximo de sua casa, cuidando dos animais.

Jovem Douglas antes de sofrer violência policia/ Arquivo Pessoal

Justiça

A dona de casa clama por justiça e diz não confiar mais na polícia. “Eles mentem muito. Eu acredito que eles tenham inventado essa arma para se livrarem mas tudo o que polícia fala vale”. 

Após a perda do filho mais velho, Aurineide precisou de acompanhamento psicológico e seu marido e pai de Maykon encontrou no álcool uma forma de suportar a realidade. “Meu filho era muito apegado e carinhoso com a gente. Ele era uma pessoa muito boa.”

Observei que ela estava com dificuldade em relembrar o passado, e pedia para o filho mais novo Lucas para te ajudar com as respostas, perguntei para ele se poderia falar de Maykon também. Ele concordou.

“Aquele foi o pior dia da minha vida. Não sei nem como falar o quanto foi difícil”. 

Lucas dividia o quarto com o irmão, e diz que ainda é difícil ver as coisas do irmão. “As coisas dele ainda estão no quarto. No dia do acontecido, o Maykon usava um relógio que eu ainda guardo em uma caixa. O relógio ainda tem a marca de sangue de como se o meu irmão tivesse sido morto ontem”. 

Enquanto o filho mais novo relata o evento traumático da família, ao seu ponto de vista, Aurineide chora baixinho cabisbaixa. “Minha mãe virou outra pessoa, só ficava deitada e tomava remédio controlado”. Pergunto se ela pode me mostrar fotos do Maykon Douglas, e ela me revela vídeos do dia da morte do filho. “Esses vídeos que me ajudaram a lidar com a morte dele, porque mostram que o meu filho é inocente e que ele não tinha nenhuma arma, ele só estava com uma blusa branca na mão”. 

A violência ocorreu ainda no período de pandemia, 20 de fevereiro, e por conta disso houve atrasos no processo de investigação. A família busca por justiça até hoje. A reportagem entrou em contato com a PRF que até o fechamento da matéria não quis se pronunciar. 

Síndrome da morte do berço  

Perder um filho, a qualquer idade, leva a família a viver um processo de luto. “Eu e meu marido estávamos muito felizes com a chegada do nosso primeiro filho. Nosso lindo e doce Pedro. Estávamos no nosso apartamento, na Asa Sul, eu e o Almyr no quarto de casal dormindo e o Pedro de quatro meses, dormia no seu quarto com a babá. Ele não acordou para mamar às 2 horas da manhã e quando acordei as 6 horas, já o encontrei roxinho, frio e sem vida”. Esse relato é da dentista Eliana Fregonasse, atualmente com 55 anos, que passou pela maior perda da sua vida há quase três décadas. 

A Síndrome da Morte Súbita Infantil (SMSI), também conhecida como síndrome da morte do berço, é um dos maiores temores de pais de recém-nascidos. Trata-se de uma morte inesperada e inexplicável de bebês aparentemente saudáveis, geralmente durante o sono, no primeiro ano de vida. Embora silenciosa, essa síndrome é devastadora por não ter sinais de alerta que possam prever o ocorrido, e as causas ainda permanecem desconhecidas.

Eliana recorda que após encontrar o filho frio e com os lábios roxos no berço, foi às pressas para o hospital. Pedro já chegou morto. “Durante o caminho, eu conversava com Deus, pedindo para ele devolver nosso bebê. Ao chegarmos ao hospital, a médica o tomou dos meus braços carinhosamente e eu me atirei no chão, gritando e chorando desesperada”. Eliana, diz que o marido a abraçou e o casal entrou em uma espécie de congelamento, por não acreditarem que aquilo estava acontecendo com eles. A dentista precisou ser medicada com uma injeção de calmante e diz não se lembrar de como foi embora do hospital naquele dia. 

Almyr e Eliana com seu primogênito Pedro/ Arquivo Pessoal.

Eliana diz que contou sua história por meio da escrita, como se fosse um diário. Ela disse que, em 10 anos, nunca tinha falado sobre isso, mas sempre desejou contar sua história de forma que ajudasse outras mães que tiveram uma perda semelhante. 

Apego na fé 

A família já estava passando por um momento de fragilidade, antes da morte repentina do bebê. A mãe de Eliana estava com câncer terminal. “Minha mãe foi um dos motivos para eu engravidar para que ela pudesse conhecer o neto”, revela Eliana. 

No dia da morte do Pedro, o casal após saírem do hospital foram para a casa dos pais de Eliana. Ao saberem da trágica notícia, os avós ficaram aos prantos. “Meu pai, sempre forte e corajoso, ao receber a notícia, jogou o boné no chão, chorou e disse: ‘Deus, isso não pode acontecer’. Minha mãe ficou paralisada e falou: ‘Deus, sou eu que tenho que ir’”. 

A família ficou incrédula com a morte do bebê saudável. Nesse momento frágil, a dentista buscou na fé e espiritualidade, o apego e respostas. O casal, por impulso, foram até a igreja onde se casaram, a Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, localizada no Lago Sul. “Andamos até o altar, elevamos os nossos braços e entregamos o Pedro a Deus em uma oração. ‘Pai, você nos deu essa criança linda e perfeita e nós agora a devolvemos a ti’”. Ali, ela relata que sentiu como se “o bálsamo milagroso tivesse caído” sobre eles. “Isso nos deu o entendimento de que ele não sofreu e que ele foi para o lado de Cristo”. 

No momento do enterro, ela diz que foi muito duro mas que dividiu a dor com as pessoas queridas que estavam presente. “Ao chegarmos, vimos uma multidão de pessoas. Caminhamos até o caixãozinho branco. Foi a hora mais difícil de toda a minha vida.” 

Uma nova vida 

Por causa da morte do filho, Eliana e Almyr ficaram mais espiritualizados e isso os deu força para continuar suas vidas.

“Deus nos aproximou ainda mais, nos deu uma força inabalável e logo decidimos ter mais um bebê. Não para ocupar o lugar do Pedro mas preencher nossas vidas com a alegria de uma criança”. 

Com 10 dias do falecimento do bebê Pedro, Eliana também perdeu sua mãe. “Me lembro que no dia seguinte de quando o Pedro se foi, eu estava dando banho na minha mãe e com lágrimas nos olhos ela me disse que era ela que deveria estar cuidando de mim. E eu não sei de onde tirei forças para responder que estava tudo bem”. 

Por conta de tantas perdas, Eliana estava decidida em ter outro filho.Tiveram uma menina, Luiza. “Demos esse nome a ela por ser a nossa luz e nossa alegria”, explica. Após nove anos, também nasceu Rafael

Eliana e Almyr com seus filhos Luiza e Rafael na virada do ano de 202/ Arquivo Pessoal.

Ressignificação 

A psicóloga Simone Lavorato, pesquisadora no tema do luto, diz que o processo para uma mãe quando perde o filho é mais doloroso. E precisa de todo apoio e tempo para aprender lidar com o vazio do quarto, da ausência do perfume e com a saudade que dói latejada. A psicóloga destaca que a melhor forma de ajudar uma mãe a superar esse trauma é acolher e validar o sentimento, entender a dor sem tentar suprimi-la com explicações prontas. “Não adianta dizer: ‘Não sofra, ele está bem, está com Deus’, se a pessoa não tem equilíbrio emocional para pensar assim”. 

O acolhimento é se colocar à disposição, mesmo sem ter passado pela mesma experiência, e dizer: ‘Eu imagino o quanto você está sofrendo, estou aqui’. Deixar a pessoa chorar, viver o luto é fundamental. Quando etapas são interrompidas, como quando uma mãe é dopada e não consegue participar do velório do filho, o processo de luto se torna muito mais difícil. Fica um vácuo, como se a perda não tivesse existido”, explica a profissional. O sofrimento precisa ser reconhecido para que a cura emocional aconteça.

Após a perda, um dos maiores desafios é o que ela chama de “ressignificar a vida”, já que a vida continua, tanto para a pessoa em luto quanto para sua família. “Muitas vezes, outros filhos também param em função desse luto. A mãe precisa encontrar uma atividade que a faça resgatar o prazer de viver”, reflete a psicóloga. 

Juliene, depois do enterro do filho Miguel disse que foi difícil ficar em sua casa por ainda sentir a presença do bebê e mesmo ainda sofrendo com o luto, decidiu doar as coisas do filho. Naquele período, ocorreu a tragédia da Barragem de Brumadinho, em Minas Gerais, que fez com que várias famílias perdessem tudo por conta da lama. 

Juliene decidiu doar tudo para as crianças de Brumadinho. “Eu não queria correr o perigo de doar para alguma criança próxima de mim e ver ela usando as coisas do Miguel, seria demais para mim. Então doei tudo, exceto a roupa que ele saiu da maternidade, para as crianças de Brumadinho”. 

Assim ela iniciou o seu processo de ressignificação, a mãe do Miguel se graduou em fonoaudiologia e entrou para a Febrarara (Federação Brasileira de Doenças Raras), com intuito de ajudar outras mulheres que têm filhos com doenças raras e busca todo dia combater a desinformação da Epidermólise Bolhosa. Juliene diz que não existe uma  nomenclatura para mães que perdem o filho.

“Quem perde os pais, vira órfão. Quando perdem o marido, viúva mas não existe um nome para uma mãe que perde o filho, elas só perdem.” 

Aurineide encontrou no carinho da família forças para continuar e buscar justiça pelo seu filho, mesmo sendo uma batalha todos os dias não poder escutar a voz do Maykon Douglas. E Eliana encontrou na fé e na espiritualidade, ressignificar sua dor. A psicóloga diz que a ideia de que há um tempo definido para o luto, ou que ele deva ser igual para todos, é equivocada. “Não existe isso de parar de sofrer porque somos seres humanos, cada um com sua especificidade, com sua personalidade e repertório comportamental.”

Ela ressalta que o tempo de luto varia muito de pessoa para pessoa, e julgamentos sobre o “tempo ideal” são prejudiciais. “Muitos dizem: ‘Nossa, o luto dela está demorando muito’ ou ‘Ela superou muito rápido’, mas não cabe a nós atribuir valores ou julgar. Cada um tem seu tempo, e é importante respeitar isso”, reforça Simone.

O processo de luto pode durar anos para algumas pessoas, enquanto para outras pode ser mais. Para essas mães, dia após dia, é uma luta para seguir adiante com o sentimento de colo vazio.  Grupos de apoio, que se reúnem na maior parte das cidades brasileiras, também podem ser um caminho para que as famílias saibam que não estão sozinhas na dor.

Sob supervisão dos professores Luiz Claudio Ferreira e Gilberto Costa

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