Como a Irlanda do Norte abandonou uma das leis mais duras contra o aborto no mundo e virou exemplo progressista

ANGELA BOLDRINI
LONDRES, INGLATERRA (FOLHAPRESS)

No primeiro episódio da série norte-irlandesa “Derry Girls”, a personagem Michelle apresenta James, seu primo inglês, às demais protagonistas. “Ele é filho da minha tia Kathy”, diz, virando os olhos. “Eu te falei sobre a minha tia Kathy, que foi para a Inglaterra para fazer um aborto e nunca voltou Aparentemente nunca fez o aborto também.”

O tom é de piada, como tudo em “Derry Girls”, talvez o produto cultural mais influente sobre o norte da ilha da Irlanda desde a música “Sunday Bloody Sunday”, da banda U2. Mas o trecho reflete a realidade nada engraçada de milhares de mulheres durante as décadas em que a Irlanda do Norte foi a única nação do Reino Unido a manter o aborto criminalizado.

Em 1967, o governo britânico efetivamente descriminalizou a interrupção gestacional na Inglaterra, Escócia e País de Gales. “Mas a Irlanda do Norte manteve uma das leis mais restritivas no mundo”, explica Fiona Bloomer, professora da Universidade Ulster, em Belfast.

Até 2019, o aborto era permitido na legislação local apenas em caso de risco de vida para a gestante, sem exceções para estupro, incesto ou anomalias fetais graves. A pena para mulheres e médicos podia chegar a prisão perpétua. Nesse cenário, a estimativa é de que, em 2016, apenas 16 abortos tenham sido realizados, em uma população de quase 2 milhões de pessoas.

A mudança da lei inglesa gerou um êxodo de mulheres em busca de interrupção da gravidez. A Irish Family Planning Association afirma que, entre 1980 e 2022, cerca de 160 mil mulheres tenham feito a viagem.

Em 2019, o número registrado pelo governo britânico foi cerca de mil. Em 22 de outubro daquele ano, a Irlanda do Norte abandonou a legislação restritiva e virou o mais recente caso de descriminalização do aborto na Europa. Cinco anos depois, ativistas ainda veem buracos na implementação, mas modelo de regulação é visto como exemplo.

A lei atual prevê que o aborto pode ser acessado por qualquer motivo até as 12 semanas de gestação e até as 24 semanas com o aval de dois médicos. Há exceções que permitem o procedimento acima dessa idade gestacional, como em casos de anomalia severa do feto. Além disso, foram previstas “zonas seguras” em torno de serviços, onde é proibida a permanência de ativistas contrários ao aborto.

Emma Campbell, à época uma das lideranças do grupo de ativistas Alliance for Choice, atribui a vitória a décadas de campanhas, disputas judiciais e lobby com um aliado improvável e polêmico: o Parlamento de Westminster, centro do governo britânico.

“A estratégia de conseguir a descriminalização por meio de Westminster não era unanimidade”, conta Campbell. “Algumas pessoas enxergavam isso como estar pedindo um favor ao colonizador, mas nós entendemos como reparação histórica.”

A resistência a Westminster tem razões históricas centenárias, que marcam a disputa pelo território da Irlanda por nacionalistas irlandeses e colonos britânicos. A Irlanda do Norte, criada em 1921 após a independência do que hoje é a Irlanda, que ocupa a parte sul da ilha, foi palco de um conflito sectário entre católicos que pleiteiam uma Irlanda unificada e protestantes que defendem a manutenção do território no Reino Unido.

Essa disputa está na origem da diferença de décadas entre as leis que regulam os direitos reprodutivos.
“Quando a mudança na Inglaterra foi introduzida, em 1967, a Irlanda do Norte era vista como algo essencialmente separado, em que eles não deviam mexer”, afirma Bloomer. “Aí veio a fase mais dura do conflito, e depois a paz, que era considerada frágil, e ninguém queria mexer no vespeiro do aborto.”

A fase mais sanguinária das hostilidades terminou em 1998, com o Acordo da Sexta-Feira Santa. O governo local norte-irlandês continuou instável. Em 2019, a assembleia legislativa conhecida como Stormont estava em recesso havia dois anos, lançando o controle sobre o país novamente para Londres.

Um dos pontos mais importantes para as ativistas era provar aos parlamentares ingleses que a opinião pública da nação, com fama conservadora, tinha mudado. Uma pesquisa realizada pela Anistia Internacional em 2018 mostrou que 65% dos habitantes da ilha eram favoráveis à liberação do procedimento.

Bloomer atribui a mudança em parte a casos midiáticos de criminalização e falta de acesso. Em 2013, Sarah Ewart comemorou uma gravidez desejada. Poucas semanas depois, porém, recebeu a notícia de que o feto não sobreviveria fora do útero.

“Tive que viajar para a Inglaterra para abortar e foi uma experiência horrível, porque eu deveria estar em casa, perto da minha família e amigos”, contou Ewart à BBC, em 2019. Ela decidiu processar o estado, e a Suprema Corte de Belfast decidiu que os direitos humanos de Ewart tinham sido violados pela proibição.

Em 2016, uma adolescente de 19 anos foi denunciada à polícia pelas colegas de apartamento após tomar pílulas abortivas. A jovem afirmou que não tinha dinheiro para fazer a viagem à Inglaterra, que custa centenas de libras, e foi condenada a um ano de liberdade condicional.

Dois anos depois do caso, um relatório da Cedaw (convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres, na sigla em inglês), órgão que faz parte da ONU, afirmou que a Irlanda do Norte discriminava contra as mulheres ao não providenciar abortos legais e seguros dentro de seu próprio território. No mesmo ano, a República da Irlanda descriminalizou o procedimento.

“Hoje nós temos uma das melhores leis do mundo, porque trechos do relatório foram incorporados diretamente”, diz Campbell. Ironicamente, a nova legislação norte-irlandesa aprovada por parlamentares ingleses é considerada mais progressista do que a inglesa.

Isso porque o ato de 1967 não revogou as punições criminais para o aborto, mas criou exceções que são utilizadas no sistema público de saúde para criar uma descriminalização de facto do procedimento até as 24 semanas. No entanto, o número recorde de mulheres criminalizadas desde 2018 tem levado ativistas a pressionarem Westminster por uma alteração na lei. A ideia é que a regulação passe a se assemelhar, justamente, à da Irlanda do Norte.

Após a descriminalização, a implementação dos serviços foi lenta. Atualmente, porém, o procedimento pode ser realizado na rede pública em todo o território, e há ao menos dois serviços para abortos cirúrgicos, acima de 12 semanas. Ainda não é o suficiente, diz Danielle Roberts, membro atual da Alliance for Choice.

“Nós não temos acesso à telemedicina, como outras partes do Reino Unido, e ainda há serviços em que as mulheres encontram barreiras de acesso, como objeção de consciência”, diz.

Embora apoiada pela maioria da opinião pública, a descriminalização encontra resistência de ativistas contrários ao aborto, como a SPUC (sociedade para proteção das crianças não-nascidas, na sigla em inglês). A organização tentou reverter judicialmente a nova legislação, mas acabou derrotada em 2023.

O grupo Precious Life, que também advoga pela reversão da lei, realizou um protesto no centro de Belfast no sábado (19) usando sapatos de bebê e cruzes brancas. Em nota, a diretora do coletivo, Bernadette Smyth, afirmou que a mudança na regulação foi feita “em desacordo com a vontade popular e a santidade da vida”.

Para o bem ou para o mal, dependendo do seu lado na disputa, o que não resta são dúvidas sobre a mudança de paradigma criada pela descriminalização. Entre abril de 2022 e março de 2023, foram realizados 2.100 abortos no território.

No mesmo período, apenas 172 mulheres viajaram à Inglaterra para obter o procedimento -tornando, enfim, a piada de Derry Girls uma reminiscência histórica, quase tão improvável em 2024 quanto encontrar um militante do IRA dentro do porta-malas do carro.

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