Jornalismo local vira arma contra o pânico entre imigrantes latinos nos EUA

(Foto: cottonbro studio: Pexels)

A crise da deportação em massa de imigrantes ilegais nos Estados Unidos tornou os pouco mais de 560 projetos informativos, que atendem a comunidades hispânicas norte-americanas, exemplos práticos do potencial sociopolítico do jornalismo local. O pânico gerado pela avalanche de notícias falsas entre os quase 66 milhões de imigrantes e descendentes de imigrantes (cerca de 19,5% da população norte-americana) colocou os editores de jornais, rádios e sites noticiosos hispânicos diante da incômoda opção entre omitir-se, correndo o risco de perder seu público, ou informar combatendo as fakes news e incorrendo na ira das autoridades de imigração. (1)

A grande maioria dos projetos jornalísticos voltados para a comunidade hispânica norte-americana optou pela segunda hipótese, o que levou repórteres e editores a terem que incorporar todas os requisitos do jornalismo local na cobertura da questão migratória. O que antes era tema para debates acadêmicos ou sindicalistas se tornou, inesperadamente, um desafio profissional real e inadiável. A informação local online nas comunidades hispânicas norte-americanas deixou de ser uma possibilidade futura para ser um pré-requisito insubstituível na relação entre jornalistas e a comunidade.

O jornal bilingue (espanhol/inglês) El Timpano, de Oakland (Califórnia), voltado para imigrantes hispânicos e chineses, teve que mudar a rotina de seus repórteres e editores para preservar o anonimato de fontes, porque os entrevistados e colaboradores temem ser presos pelo ICE (Immigration and Customs Enforcement – órgão encarregado da captura e deportação de imigrantes indocumentados). O jornal descobriu que seus leitores dependem de informações para lograr um mínimo de tranquilidade em meio a um acúmulo de notícias falsas que geram pânico e desespero. Ao mesmo tempo, as pessoas resistem a dar informações por medo de serem presas e deportadas.

Manuais anti-medo

Heather Tirado Gilligan, editora-chefe do El Timpano, disse à publicação acadêmica Nieman Lab que seu jornal teve que criar normas como identificar as pessoas apenas pelo primeiro nome (sem sobrenome), não fornecer endereços e nem fotografar placas de carros ou casas de entrevistados. Também não identificam lugar de trabalho, emprego ou parentescos. Segundo ela, são medidas necessárias para tranquilizar as pessoas e permitir que elas falem e passem informações sem serem presas e deportadas. Estas e outras orientações foram incluídas num manual para que repórteres e editores tomem consciência da importância de obter a confiança e a colaboração de leitores, numa conjuntura marcada pelo medo e insegurança nas comunidades de imigrantes nos Estados Unidos.

O The Mission Local e o Fresnoland, ambos da região de São Francisco, também perceberam como a desinformação e as notícias falsas estavam aumentando as incertezas e angústia dos imigrantes e descendentes. Os dois jornais criaram canais de atendimento do público para esclarecer rumores e boatos, o que acabou levando a população hispânica e também os moradores de origem chinesa a estabelecerem uma relação direta e quase diária com os jornalistas de ambas as publicações. Os repórteres deixaram de ser produtores de notícias para funcionar como orientadores, checadores e educadores em matéria de informação, comprovando na prática teses de pesquisadores acadêmicos sobre o futuro da atividade jornalística na era digital.

O pânico contagiante nas cidades com grande percentual de imigrantes latinos criou situações paradoxais, como o caso de um casal que foi preso por denúncia anônima quando falava espanhol durante compras num supermercado no Texas. Ficaram detidos dois dias até a polícia descobrir que eram cidadãos norte-americanos residentes em Porto Rico e foram soltos. Outros imigrantes originários de países latino-americanos não tiveram a mesma sorte. Foram deportados com a roupa do corpo, deixando tudo o que possuíam nos Estados Unidos, inclusive filhos, em alguns casos.

O jornalismo em tempos de crise

Agora, sempre que algum boato surge na comunidade sobre ações do ICE em alguma parte da cidade, as pessoas imediatamente entram em contato com o jornal do bairro para saber se é verdade ou não. Gisselle Medina, do The Fresnoland, publicado no condado de Fresno, também na Califórnia, admitiu sua surpresa diante do fato de que a crise das deportações reverteu a evasão de leitores registrada desde 2016 pelo instituto Pew de pesquisas. A incerteza das pessoas sobre o que fazer levou-as a confiar no jornal local online como referência obrigatória em matéria de informações relacionadas ao seu dia a dia. “O que perseguíamos havia vários anos foi alcançado em dias graças a uma situação excepcional”, afirmou Junyao Yang, repórter do The Mission.  

A decisão do governo Trump de deportar 11 milhões de imigrantes latinos considerados ilegais criou uma conjuntura onde o jornalismo local teve de encarar de frente a revisão dos comportamentos tradicionais na relação com seu público alvo. O distanciamento olímpico teve que ser substituído pelo mergulho na realidade vivida por leitores, ouvintes, telespectadores e internautas, para que os profissionais tenham condições de identificar e desconstruir as notícias falsas e processos de desinformação causadores de pânico e desorientação social. Segundo Gilligan, não se trata de ir contra uma decisão governamental, mas de cumprir a missão de todo jornalista que é a de garantir a confiabilidade da notícia.

Não é uma questão simples, porque envolve posicionamentos políticos e profissionais num contexto ultra complicado. O exercício do jornalismo local como função social pública e a prática do ativismo informativo têm uma fronteira nebulosa especialmente em situações críticas, como é o caso da ameaça de deportação maciça de vários milhões de imigrantes. Inevitavelmente, o engajamento com as pessoas e o estabelecimento de laços de confiança pode ser visto pelos responsáveis pela caçada aos ilegais como atos de resistência. Mas é em circunstâncias como essas que o jornalismo ganha relevância não como um instrumento do poder, mas como uma ferramenta dos cidadãos.

1- Dados atualizados a partir do relatório The State of the Latino News Media, produzido pela City University of New York (CUNNY), em 2019. 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.

 

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