Riqueza em tempos de crise

(Foto: Mohamed Hassan/Pixabay)

Em um mundo onde as desigualdades sociais são cada vez mais evidentes, a figura do bilionário se tornou emblemática na discussão sobre riqueza, responsabilidade social e moralidade. Com fortunas que poderiam, teoricamente, erradicar a pobreza global, é frustrante que esses indivíduos, que detêm uma parcela exorbitante da riqueza mundial, frequentemente escolham não investir em soluções para os problemas que afligem nossa sociedade.

A pergunta que surge é: por que investiriam? Afinal, essas fortunas são construídas em um sistema que favorece a concentração de riqueza e o status quo. A ideia de redistribuição ou de investir em soluções para os problemas sociais pode não fazer sentido para quem acredita que o sucesso financeiro é resultado de mérito individual. Além disso, muitos veem a desigualdade como algo natural ou merecido.

Um estudo do Comitê de Oxford para Alívio da Fome (Oxfam), publicado em 2021, revela que, enquanto 1% da população mundial possui mais riqueza do que os 99% restantes, o número de bilionários aumentou exponencialmente, como por exemplo, durante a pandemia do coronavírus (Covid-19), quando um novo bilionário surgia a cada 26 horas. Calcula-se que, com aproximadamente 20% da fortuna dos 2.640 bilionários globais, seria possível garantir moradia e alimentação básica para todas as pessoas em extrema pobreza do planeta. No entanto, esses mesmos bilionários frequentemente optam por investir em empreendimentos que beneficiam apenas a si mesmos ou em aventuras interplanetárias, como no caso de Elon Musk. Ao invés de direcionar uma fração da sua fortuna colossal para ajudar a Terra a se reerguer, Musk decidiu que viajar para Marte era uma prioridade.

Musk, conhecido por suas declarações grandiosas sobre o futuro da humanidade, gastou cerca de U$100 bilhões em sua empresa SpaceX e nos seus planos de colonização em Marte. Porém, isso contrasta absurdamente com a realidade de que 700 milhões de pessoas (sobre)vivem com menos de U$1,90 por dia. Quando questionado sobre sua filantropia, Musk responde que, ao desenvolver tecnologias que mudarão o mundo, ele já está ajudando a humanidade. Porém esse argumento levanta a questão de até que ponto as inovações para o “nosso” futuro contribuem para resolver as necessidades urgentes do presente. Será que não é um argumento falho partindo do pressuposto que só irá beneficiar os ricos?

Além disso, Jeff Bezos, fundador da Amazon e um dos homens mais ricos do mundo, segundo a Forbes, também se destaca nesse cenário. Em 2020, enquanto sua fortuna crescia também por conta da pandemia da Covid-19, Bezos anunciou que doaria U$10 bilhões para combater as mudanças climáticas. Uma quantia significativa, sem dúvidas, mas que representava apenas 7% da sua riqueza total na época, uma gota no oceano em relação com a necessidade premente de ação. Em contrapartida, esse valor poderia ser utilizado para construir aproximadamente 50 mil escolas em regiões necessitadas. Mas é claro, isso não se compara ao brilho de uma nova sede da Amazon ou à compra de um novo iate.

Esses exemplos não são meramente sobre a falta de doações, mas revelam uma filosofia mais ampla sobre o que significa ser um bilionário em nossa sociedade contemporânea. A caridade, em sua essência, tornou-se um conceito distorcido, onde o ato de doar é frequentemente utilizado como uma forma de limpar a consciência, enquanto a riqueza se acumula em uma escala cada vez maior. O Institute for Policy Studies aponta que, em média, os bilionários nos Estados Unidos doam apenas 1% de suas fortunas para a caridade. Essa estatística evidencia uma escolha limitadíssima de impacto social entre aqueles que detêm uma imensa capacidade de transformar vidas.

As discussões sobre responsabilidade social dos bilionários não devem ser reduzidas a críticas simplistas. A questão central é a forma como a riqueza é gerida e distribuída. A filantropia, no geral, não deve ser vista como um substituto de políticas públicas eficazes que abordem a desigualdade. Um sistema que permite que tão poucos tenham tanto, enquanto tantos têm tão pouco, é intrinsecamente falho. O que verdadeiramente está em jogo é a capacidade das pessoas de exigirem comprometimento e transparência, tanto de líderes empresariais quanto de instituições.

O economista francês Gabriel Zucman elaborou uma solução para combater as desigualdades sociais por meio da taxação dos “super-ricos”. Sua proposta sugere um imposto mínimo de 2% sobre a riqueza anual dos bilionários com mais de US$1 bilhão, o que, segundo cálculos, poderia gerar cerca de R$1,3 trilhão. Apenas 3 mil pessoas no mundo seriam afetadas, e no Brasil, 51 indivíduos se enquadram nesse perfil. Esse imposto poderia financiar investimentos em áreas essenciais, como educação, saúde e infraestrutura, beneficiando diretamente aqueles em situação de vulnerabilidade social.

Diante disso, será que a riqueza gerada por esses bilionários não deveria, de fato, beneficiar a sociedade como um todo, e não apenas seus interesses privados? Mesmo que indiretamente, o impacto de uma taxação mais justa poderia promover uma redistribuição mais equilibrada e contribuir para o bem-estar coletivo.

Logo, a concentração extrema de riqueza nas mãos de poucos não é apenas uma questão de moralidade, mas uma chamada urgente à ação: se não forem os bilionários a investir em um futuro mais justo, que as sociedades exijam, por meio da taxação e da responsabilidade social, uma nova distribuição que reflita o valor humano acima do lucro.

Referências bibliográficas: 

BBC News Brasil. (2021). 1% da população global detém mesma riqueza dos 99% restantes, diz estudo. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfam_fn#:~:text=A%20riqueza%20acumulada%20pelo%201,relativos%20a%20outubro%20de%202015. Acesso em 31/10/2024.

BBC News Brasil. (2021). Aquecimento global: homem mais rico do mundo, dono da Amazon doa US$10 bi para combater mudanças climáticas. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-55914402. Acesso em 31/10/2024.

Bright Cities. (2023). ODS 1: Erradicação da pobreza. Disponível em: https://blog.brightcities.city/pt-br/ods1/. Acesso em 31/10/2024.

Exame. (2022). Bilionários prometeram doar as fortunas, mas acumularam ainda mais riqueza. Disponível em: https://exame.com/brasil/bilionarios-prometeram-doar-as-fortunas-mas-acumularam-ainda-mais-riqueza/. Acesso em 31/10/2024.

Krone Capital. (2023). Exploração comercial do espaço e os mercados do futuro hoje. Disponível em: https://www.kronecapital.com.br/exploracao-comercial-do-espaco-e-os-mercados-do-futuro-hoje/. Acesso em 31/10/2024.

Migalhas. (2024). Reflexões e impactos dos mais ricos: Uma análise abrangente. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/405555/reflexos-e-impactos-tributacao-dos-mais-ricos-uma-analise-abrangente. Acesso em 31/10/2024.

NationofChange. (2020). Jeff Bezos pledges $10 billion to fight the climate crisis. Disponível em: https://www.nationofchange.org/2020/02/17/jeff-bezos-pledges-10-billion-to-fight-the-climate-crisis/. Acesso em 31/10/2024.

Notícia Preta. (2024). A taxação de bilionários no mundo pode gerar R$1,3 trilhão por ano e afetaria apenas 51 pessoas no Brasil. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/a-taxacao-de-bilionarios-no-mundo-pode-gerar-r13-trilhao-por-ano-e-afetaria-apenas-51-pessoas-no-brasil/#:~:text=Not%C3%ADcias-,A%20taxa%C3%A7%C3%A3o%20de%20bilion%C3%A1rios%20no%20mundo%20pode%20gerar%20R%241,apenas%2051%20pessoas%20no%20Brasil. Acesso em 14/11/2024.

O Antagonista. (2023). A humanidade rumo a Marte: Elon Musk planeja primeiras missões tripuladas até 2026. Disponível em: https://oantagonista.com.br/mundo/a-humanidade-rumo-a-marte-elon-musk-planeja-primeiras-missoes-tripuladas-ate-2026/. Acesso em 31/10/2024.

Oxfam Brasil. (2021). Um novo bilionário surgiu a cada 26 horas durante a pandemia, enquanto a desigualdade contribuiu para a morte de uma pessoa a cada quatro segundos. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticia/um-novo-bilionario-surgiu-a-cada-26-horas-durante-a-pandemia-enquanto-a-desigualdade-contribuiu-para-a-morte-de-uma-pessoa-a-cada-quatro-segundos/. Acesso em 31/10/2024.

Oxfam International. (2022). Survival of the Richest. Disponível em: https://oxfamilibrary.openrepository.com/handle/10546/621287. Acesso em 31/10/2024.

UOL Economia. (2021). Bilionário que foi ao espaço, Bezos ganhou R$9.378 por segundo em 2020. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/04/07/jeff-bezos-dono-da-amazon-e-mais-rico-do-mundo-ganhou-us-2000segundo.htm.Acesso em 31/10/2024.

***

Victória Silva da Veiga é natural de Rio Grande, no Rio Grande do Sul. Estudou Letras – Língua Portuguesa na Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e atualmente estuda Jornalismo na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

 

O post Riqueza em tempos de crise apareceu primeiro em Observatório da Imprensa.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.