Vicente sábio

(Foto: CHÂU VIỄN/Pixabay)

O pensamento no Brasil é frágil por razões tanto materiais quanto espirituais. O país nega à maioria dos brasileiros acesso prolongado à instrução e a quase todos oportunidade de carreira livre da escravidão ao dinheiro. O resultado é o desperdício do talento dos brasileiros. Não é apenas por sermos pobres e desiguais. É também porque a desesperança materialista fala tão alto em nossa sociedade.

O ensino no Brasil continua a pautar-se em todos os níveis pelo predomínio da informação, da memorização e da exegese sobre a análise, a pesquisa e a reconstrução. O resultado é enfraquecer a independência intelectual e produzir, mesmo nos mais altos escalões da cultura acadêmica, sentimento de intimidação diante das ideias e dos métodos reinantes nas disciplinas de que tratam.

O Brasil é um país de enormes contradições. A mais chocante delas, com certeza, está em sua enorme riqueza e a precária situação econômica de significativa parcela de sua população. Os números são alarmantes, mas parecem não sensibilizar os governos que ignoram também o aumento da violência urbana e da criminalidade, o crescente nível de mortalidade infantil, e o avanço da favelização, inclusive das capitais dos estados mais ricos e desenvolvidos. O país já soma 16,4 milhões de brasileiros (7,7% da população) vivendo em favelas, a imensa maioria desprovida de condições mínimas de higiene e sanitárias.

O problema da brutal concentração de renda é antigo. Perdura há décadas e a cada ano a situação fica mais crítica, mais perversa e mais injusta. Tudo porque nenhum governo definiu e executou como prioridade a melhoria do processo distributivo de renda. Com isso, milhões de brasileiros sofrem com a omissão ou o descaso dos governantes, o que torna inadiável a implementação de políticas públicas para combater as desigualdades sociais.

No Brasil de hoje, 70% da população possui renda mensal inferior a R$ 2.824,00 (ou US$ 514/mês), menos de dois salários-mínimos/mês. São 148,4 milhões de pessoas. Metade de todos os brasileiros vive com R$ 1.531,00 por mês, valor um pouco maior que um salário-mínimo. E 90% dos brasileiros têm renda inferior a R$ 3.500,00/mês (ou US$ 514/mês). Apenas 3,9% da população tem renda média de R$ 28.240,00 (ou US$ 61.600/ano). O país tem 413.000 milionários (0,20% da população) e 64 brasileiros (0,00003% da população) entre os bilionários do mundo. Não é de hoje que o empresariado vem trocando a defesa de um Estado mínimo por uma nova estratégia que também garante o lucro de seus negócios: a captura do Estado.

Nada mais deprimente do que assistir o nível da classe política contemporânea: rasa, ignorante, parva e ignóbil, dentre outros adjetivos. Fenômeno este que atinge todo o mundo e que demonstra o retrocesso civilizatório pelo qual passa a humanidade. Substituímos o conhecimento pela ignorância, o decoro pela descompostura, a oratória pela linguagem vulgar, os princípios iluministas pelo obscurantismo, a verdade pela fake news, a cortesia pela boçalidade, a ideia pelo vazio, a seriedade pela molecagem. Isso tudo sob os holofotes da imbecilização da sociedade que compartilha, aplaude e viraliza os horrores ruinosos dos lacradores.

Temos que transformar o deserto que nos sufoca, entender a solidão urbana, o caos social e político, o declínio econômico, as armadilhas do existir. Contudo, há aqueles que vivem amargos e sem nenhuma perspectiva de graça, beleza ou mudança. Adotam a filosofia do “quanto pior melhor”, enxergando apenas a profecia do terror, o vaticínio da tragédia. Contabilizam guerras, terremotos, epidemias e conflitos com frieza assustadora. Confundem esperança escatológica com escapismo histórico ao enfiar a cabeça no buraco da ignorância e de suas “verdades” fundamentalistas.

A realidade, por mais crua que seja, pode se tornar surpreendente e inverter sua própria lógica e sentido. “Sempre muito alinhado/Com sua verde casaca/O papagaio na mata/era o melhor imitador/Guinchava igual o macaco/Coaxava que nem o sapo/Até o homem ele imitou/Mas por ser bonito e falante/Passou a ser perseguido/Trocado, vendido/Um brinquedo ele virou/Mas quando ele fugir pra floresta/Vai ser de novo uma festa/Com a volta do imitador/ — Vou grasnar igual o pato/Chiar que nem o rato/E voar tal qual o beija-flor”. Em O Papagaio, o saudoso escritor e jornalista Vicente Sá (1957-2025) alegoricamente nos conta sobre o encanto da resistência.

O personagem exemplar do livro de cartas, O jogo dos bichos, combate uma “estética política da morte” e ilustra que nada nasce imune ao que somos, às nossas experiências e vivências. Ocupar-se de viver é quebrar convenções e censuras estabelecidas, é passar por cima de tradições caducas. Significa resistir ao medo e à subserviência, ao conformismo e à covardia conivente. A prosa poética de Vicente Sá nos convida a pensar sobre nós mesmos enquanto nos relacionamos em grupo. Dizem que precisamos nos amar em primeiro lugar, gostar do jeito que nós somos, mas talvez a autoestima não seja uma relação com o espelho, mas com a sociedade. Era imitando a bicharada que o charmoso papagaio ampliava seu leque de convivência e celebrava a diversidade, com estilo altamente original e autêntico.

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Marcos Fabrício Lopes da Silva é Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Jornalista e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023). Participante do Coletivo AVÁ, coorganizador do Sarau Marcante e Membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF).

 

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