EUA: cartas embaralhadas

dupla (9)

João Marcelo Chiabi da Fonseca*

Aprovado em 2022, após intenso debate entre democratas e republicanos e forte pressão dos lobbies das indústrias de energias renováveis e fóssil, o Inflation Reduction Act (IRA) é o maior programa de investimentos em transição energética do mundo. Legado do governo de Joe Biden, a iniciativa poderá, segundo a Universidade de Princeton, mobilizar até US$ 3 trilhões para tecnologia e infraestrutura energética até 2032, rumo à meta de carbono zero para 2050, firmada no Acordo de Paris.

A poucos dias das eleições presidenciais, não é claro o destino de iniciativas como o IRA. Na campanha de Kamala Harris, coautora da medida, as menções à política climática são discretas e cautelosas — uma escolha atenta à realidade de estados-pêndulo como a Pensilvânia, onde a economia sempre dependeu da indústria fóssil.

Ali, em 1859, perfurou-se o primeiro poço de petróleo dos EUA; hoje, o estado é um grande produtor de gás de xisto. Para além do transitório cálculo político, é natural esperar o avanço do IRA sob Harris. Do lado de Trump, embora haja risco de desaceleração e corte de incentivos, não se antecipa uma interrupção abrupta do programa, até por receio dos custos econômicos e políticos.

Eis a ironia. Passados dois anos e quase US$ 500 bilhões em investimentos, 90% dos recursos do IRA fluem para distritos republicanos em estados como Texas e Carolina do Norte. Se o America First de Trump acentua inclinação nacionalista, afastando os republicanos do livre comércio, Biden, em certo sentido, seguiu o caminho protecionista.

Com o IRA, os democratas alinharam o discurso ambiental à transição energética, criação de empregos e reindustrialização, unindo a urgência climática ao imperativo de repatriar cadeias produtivas estratégicas, como a de energia limpa. Esse mesmo impulso por empregos e menor dependência de importações — sobretudo da China — também inspirou o CHIPS Act, voltado para semicondutores, ambos, agora, pilares da nova política industrial americana.

Neste final de uma campanha radicalizada, de tamanhos contrastes entre os candidatos, é paradoxal observar temas com inesperadas convergências de inclinações e estratégias. Para se adaptarem a novas circunstâncias sociais e econômicas, os dois campos tiveram que fazer concessões, flexibilizações e até metamorfoses. Na área econômica, democratas e republicanos, considerando efeitos práticos, crescentemente partilham um credo mais nacionalista e protecionista.

Na realidade, o “bem bolado” de Biden — ao ligar clima, empregos e a rivalidade com a China — deu força à política climática, aproximando-a de temas caros aos republicanos. Há muitos interesses e capital em jogo. Elon Musk, cotado para função relevante em eventual governo Trump, exemplifica essa hipótese, com seus interesses diretos na transição energética por meio da Tesla, fabricante de veículos elétricos e baterias. Não será fácil abandonar essa agenda.

João Marcelo Chiabi da Fonseca é advogado, consultor e mestre em Políticas Pública pela Escola de Estudos Internacionais Avançados (SAIS) da Universidade Johns Hopkins

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