Quem é Karla Sofía Gascón, primeira atriz trans indicada ao Oscar, por ‘Emilia Pérez’

emilia perez

LEONARDO SANCHEZ
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Precisamos de mais energia masculina, disse Mark Zuckerberg em seu apoio ao novo governo de Donald Trump há três semanas, emendando que há mérito em ser agressivo no ambiente de trabalho. Mas é o contrário disso que “Emilia Pérez” e sua estrela, Karla Sofía Gascón, pregam.

“Os homens têm muito a aprender com a feminilidade, eles precisam conversar e entender em vez de recorrer à violência. A evolução do ser humano passa pela mulher”, disse a atriz em sua visita relâmpago ao Brasil, na semana passada.

É um discurso que guia o roteiro do filme, indicado a 13 estatuetas do Oscar. Na trama, uma traficante de drogas passa por uma transição de gênero e, tão logo sai da sala de cirurgia, abandona uma vida de assassinatos para fundar uma ONG que ajuda parentes de desaparecidos.

“Basta ir a uma partida de futebol para entender que lado da nossa sociedade se expressa com violência. Na sociedade em que vivemos, os homens são livres fisicamente, mas não mentalmente. Com as mulheres, é o contrário. Aprendemos isso desde crianças”, continua ela, num tom assertivo e determinado.

Gascón é uma mulher de presença forte. As unhas longas e coloridas balançam enquanto ela gesticula para responder às perguntas, preenchendo o quarto de hotel na capital paulista com sua personalidade. Fora das câmeras, o jeito caloroso e extrovertido com o qual se dirigia à sua equipe e a funcionários contrastava com a firmeza do discurso.

Aos 52 anos, a espanhola se tornou a primeira atriz transexual indicada ao Oscar e, enfrenta, no dia 2 de março, Fernanda Torres, a quem reserva uma série de elogios. “Ela é uma mulher maravilhosa e uma atriz incrível, que merece todo o reconhecimento do mundo. Dá para ver que, como eu, ela põe muito amor no trabalho que faz.”

Torres, por sua vez, já havia elogiado a concorrente na ressaca da vitória no Globo de Ouro, no começo do mês Gascón não disputava a mesma categoria, destinada a dramas. A protagonista de “Ainda Estou Aqui”, porém, precisou reforçar as palavras gentis à espanhola, diante da campanha de ódio contra “Emilia Pérez”, protagonizada em boa parte por brasileiros.

“Não vamos tratar ninguém mal e criar uma coisa de que é um contra o outro”, disse Torres num vídeo em suas redes sociais. “Karla Sofía Gascón, te amo para sempre. Uma mulher talentosa e generosa, que merece nosso carinho.”

Personagem-título do musical sobre o narcotráfico no México, Gáscon foi tragada por uma espiral de polêmicas nas últimas semanas, num curioso choque entre a recepção calorosa da crítica e da indústria, no último Festival de Cannes, e a que recebe agora, nas salas de cinema.

As acusações são principalmente de apropriação cultural, porque o filme é uma produção francesa com protagonistas que não são mexicanas, e de transfobia. Isto pelo uso do “nome morto” aquele anterior à transição de gênero da protagonista em várias cenas e do lugar-comum da personagem trans violenta, que já rendeu problematizações de clássicos como “O Silêncio dos Inocentes”.

Gascón rebate as críticas. Diz se sentir ofendida quando usam o seu nome morto, mas que esta é uma personagem de ficção. Era importante mostrar várias etapas e faces de sua vida, principalmente para o filme chegar ao público mais amplo possível, para além de uma bolha já versada nestes temas.

“É um filme que mostra que a transexualidade pode estar em todos os lugares, ela não é limitada às margens, às esquinas, como a sociedade quer. Parece que personagens LGBTQIA+ que não são imaculados, que não vivem felizes num mundo estúpido de fantasia não são bem-vindos. Na nossa comunidade há pessoas maravilhosas e há pessoas que não são. Há quem queira fazer o bem e quem queira fazer o mal. Somos como todos os outros.”

Nascida em Alcobendas, nos arredores de Madri, a atriz também rejeita aqueles que a julgam imprópria para interpretar uma personagem latino-americana. Ela se considera “mexicana por adoção”, vem dizendo em entrevistas, um vínculo que seria ainda mais forte, já que é fruto de uma escolha, não de mero acaso ao nascer.

Gascón se descobriu atriz aos 16 anos, buscou formação na área e logo começou a trabalhar em séries da BBC. Ainda na Espanha, atuou em novelas de apelo local e em filmes pouco expressivos. A convite do diretor mexicano Julián Pastor, Gascón decidiu se mudar para o México, em 2009, no que define como uma busca por papéis mais diversos.

Daí em diante, enfileirou personagens em telenovelas e filmes de apelo popular, que a projetaram como uma das principais estrelas das telas mexicanas até a metade da década passada. Depois de um longo período longe dos holofotes, Gascón anunciou que havia completado sua transição de gênero numa autobiografia, lançada em 2019.

Foi só com “Emilia Pérez”, porém, que seu nome extrapolou o universo hispânico. Seu trabalho amplamente elogiado no Festival de Cannes lhe rendeu o prêmio de atuação feminina compartilhado com as colegas de elenco Zoe Saldaña, Selena Gomez e Adriana Paz– e, mais tarde, indicações ao Oscar, Globo de Ouro, Bafta, Satellite, Critics Choice e SAG Awards, bem como menções em listas de várias associações de críticos.

Foi um ano de muitas mudanças na vida de Gascón, mas ela parece já ter assimilado a fama. Sem estrelismo, vem se portando como integrante natural de um grupo de atrizes que, nesta temporada, inclui gente como Demi Moore, Nicole Kidman e Angelina Jolie.

Talvez pelas demandas da grandiosa campanha de divulgação de “Emilia Pérez”, porém, a espanhola ainda não conseguiu mergulhar de cabeça no que será sua carreira a partir de agora. O único papel substancioso para o qual fechou contrato é para uma adaptação de “Las Malas”, obra de Camila Sosa Villada que terá direção de Armando Bó, vencedor do Oscar pelo roteiro de “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”.

Ela já pensa, porém, em tudo o que poderá fazer com os holofotes que conquistou. “Tenho uma responsabilidade social como qualquer outro ser humano deste mundo, porque todos temos de trabalhar para uma sociedade melhor”, afirma.

“Não vou desperdiçar a oportunidade de agora. Por isso, todos os meus discursos são relacionados a dar esperança não apenas a pessoas trans ou LGBTQIA+, mas a todos que tentam seguir adiante, que tentam melhorar de vida, mesmo que nos tentem relegar à escuridão.”

EMILIA PÉREZ

  • Quando Estreia em 6 de fevereiro, nos cinemas
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña e Selena Gomez
  • Produção França, México, Bélgica, 2024
  • Direção Jacques Audiard
Adicionar aos favoritos o Link permanente.