‘Anora’ cria protagonista inesquecível, mas despe todo o seu protagonismo

anora

WALTER PORTO
FOLHAPRESS

Quando o roteiro de “Anora” chega a seu primeiro ponto de virada, você já sabe que não vai mais esquecer a performance de Mikey Madison.

Ali, a jovem prostituta aceita o pedido de casamento de um herdeiro milionário e deixa transparecer, em cada traço de seu rosto, a perda da relutância em acreditar que, afinal, sua vida pode ter um final feliz. É a primeira vez que Anora se desarma na cama, e é atuação de gente grande.

Aos 38 minutos de filme, é também um dos últimos momentos antes de o diretor Sean Baker escantear aquela personagem às calendas, quando sua casa de bonecas é invadida por capangas estabanados. Por quase uma hora, Madison vira quase coadjuvante e, para entender isso, só com uma dose violenta de boa vontade.

Sabendo da inspiração confessa do cineasta nas “Noites de Cabíria” de Federico Fellini, o segundo ato serve para reforçar o quanto a vida dessa Giulietta Masina da geração Z está à mercê da vontade alheia, como é limitada sua capacidade de se contrapor às forças patriarcais que regem o mundo.

Vem para reforçar também, cara plateia, que aqui a realidade é dura, não o bilhete dourado de “Uma Linda Mulher” algo que já era evidente na primeiríssima cena, com uma sequência bastante explícita de dança erótica no colo de engravatados anônimos filmada como uma terça-feira qualquer.

Baker é o cineasta dos esquecidos do capitalismo e seus sonhos esmigalhados, equilibrando angústia social e humor cúmplice com progressiva habilidade em “Tangerina”, “Projeto Flórida” e “Red Rocket” sua melhor obra. Escorrega em “Anora”, ironicamente seu filme premiado com a Palma de Ouro em Cannes.

Tragédias anunciadas são a espinha dorsal dessa filmografia, e qualquer pessoa com alguma estrada já entende nos primeiros minutos que a relação da moça com seu boyzinho russo não era amor, era cilada.

Que Anora se deixe cegar por isso é compreensível “quem nunca?”, mas o filme em que ela está confunde fatalismo com passividade. Conforme o castelo de cartas desmorona, Baker desiste de explorar novas facetas daquela jovem, despida de qualquer iniciativa que não seja gritar no vácuo.

Se a impotência da garota diante da força do dinheiro é plausível, não quer dizer que funcione como bom cinema. Nos 39 minutos excruciantes de sumiço do marido, em que o cineasta julga fundamental registrar uma perseguição detalhada pelos cafofos menos interessantes da cidade, Anora vai se apagando.

É quase como jogar fora um bilhete premiado. Quase, porque no terceiro ato do filme há uma aproximação comovente entre ela e o capanga Igor, vivido por Yura Borisov e é um alento que os dois atores estejam prestes a ser indicados ao Oscar.

O contato bruto e reticente entre essa dupla que sobrevive, apesar do mundo, é uma fagulha que lembra o que fez de Baker um cineasta respeitado. Mas a verdade é que esse fósforo é riscado por Madison, atriz que defende sua personagem melhor que seu criador. Se o filme se atenta às forças que a constrangem em refém, ela se encarrega de procurar pela humanidade que a acende como mulher.

Pouco do roteiro ficaria de pé se não fosse o carisma da atriz por que Anora, que se vira todo dia no mundo-cão das casas de striptease, se deixa ludibriar por tanto tempo? Por que não planeja nada? Por que não age?

É difícil se engajar com protagonistas sem agência. O ator pornô no centro de “Red Rocket” é responsável por mover toda a narrativa com seus projetos, ainda que estapafúrdios, e suas trapaças, ainda que condenáveis. Anora só reage, parcamente, ao que se apresenta a ela.

É lamentável que Baker acredite que o sentimento que deve prevalecer sobre uma criação tão única quanto a prostituta Anora e seus sorrisos zombeteiros, seu sotaque mastigado, seus cabelos enfeitados com um brilho cuidadoso seja a pena.

ANORA
Regular
Quando Estreia: nesta quinta (23), nos cinemas
Classificação: 16 anos
Elenco: Mikey Madison, Mark Eydelshteyn e Yura Borisov
Produção: EUA, 2024
Direção: Sean Baker

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