Gravado no DF, thriller “Dia Útil” revela violências invisíveis da classe média brasileira

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Com um olhar sensível e crítico sobre dinâmicas de poder e violências estruturais, o longa-metragem “Dia Útil” surge como um retrato potente da realidade de muitas mulheres brasileiras. Dirigido pelas irmãs Daniela e Laura Diniz, o thriller foi gravado em Brasília e é protagonizado por Gabriela Correa e Rainer Cadete. Inspirado em casos reais de violência doméstica, o filme aborda temas como gênero, exploração no trabalho doméstico e as hipocrisias escondidas dentro de lares da classe média.

Na trama, Gabriela Correa interpreta Dagmar, uma diarista que luta para reconstruir sua vida após escapar de um relacionamento abusivo. Sua rotina, dividida entre o cuidado com um filho que tem epilepsia e o trabalho na casa de uma família de classe média, é abalada quando seu ex-companheiro Wellington, vivido por Rainer Cadete, sai da prisão. Determinado a reencontrá-la, ele dá início a uma perseguição obsessiva, revelando as tensões e as violências cotidianas que Dagmar enfrenta.

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Rainer Cadete e Gabriela Correa — Foto: Lumelo/Agência Um Nome

Em entrevista exclusiva ao Jornal de Brasília, Gabriela Correa destacou os desafios de viver uma personagem tão intensa e repleta de camadas: “Nosso elenco teve o privilégio de ter a preparação da Adriana Lodi no período de ensaios e também durante o set, o que foi maravilhoso pra gente. Nos ensaios, conversamos muito sobre esses personagens, a relação entre eles e o que cada um representava no roteiro. Junto à preparação e à direção, eu tentei sempre levantar formas de fazer essa personagem sem romantizar seu sofrimento ou sua personalidade, porque pra mim é essencial fugir de estereótipos ou de imagens que sustentem essa fantasia de que mulheres negras têm que ser fortes ou ‘guerreiras’ o tempo todo”.

O filme, atualmente em fase de montagem, propõe uma análise profunda sobre as microviolências que permeiam a vida de mulheres em situação de vulnerabilidade. Dados da Organização das Nações Unidas destacam que o Brasil é o quinto país no mundo em casos de feminicídio, um contexto que inspira a narrativa do longa. A partir da perspectiva de Dagmar, “Dia Útil” revela como ambientes aparentemente seguros podem se tornar palco de opressão e abuso, colocando em cheque estruturas de poder que perpetuam desigualdades.

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Foto: Lumelo/Agência Um Nome

Gabriela também comentou sobre como sua personagem reflete a realidade de tantas mulheres brasileiras: “Mulheres como a Dagmar são maioria nos empregos domésticos no Brasil, e se dedicam ao cuidado das casas e famílias de outras pessoas. O filme tensiona muito essa relação de trabalho, de invisibilidade, de opressão dentro da casa que ela trabalha, e tudo vai tomando proporções maiores à medida que vemos que o ex-namorado agressor dela está de volta. Então, por mais sutis e banais que as situações que ela passa no trabalho pareçam ser, o contexto geral dela é de opressão de gênero, de raça e classe também”.

A atriz destacou ainda a carga emocional intensa durante as filmagens: “Durante a preparação com a Adriana, a gente precisava acessar lugares de emoção, sensações para criar memória, pra ter um repertório no set, pra hora do ‘ação!’. Então, eu e o elenco tivemos que encontrar sensações físicas, coisas que ajudassem a gente a acessar essa tensão, medo, raiva e ressentimento que tinha entre nossos personagens. Foi sem dúvida, um dos trabalhos de maior desgaste físico e emocional que fiz. A sorte é que estávamos bem amparados e tudo foi conduzido com muito cuidado e respeito. No fim, a gente se divertiu muito no set, foi bem leve, por incrível que pareça!”.

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Paula Otero, Gabriela Correa, Bruno Gadiol. — Foto: Lumelo/Agência Um Nome

Rainer Cadete também compartilhou sua perspectiva sobre interpretar Wellington, um personagem complexo e desafiador. “Abordar Wellington foi um processo intenso e desafiador. Tudo começou na leitura e estudo do brilhante texto das irmãs Diniz, de suas memórias, visto que o texto se trata de uma autobiografia de uma experiência vivida por elas, das provocações da Adriana Lodi, mestra a quem tenho muito apreço por me iniciar nas artes, e que reencontrei neste projeto como preparadora de elenco. Já no primeiro encontro, ela me apresentou as estatísticas de violência contra a mulher, que mostram, entre outras coisas, a informação de que a cada seis horas uma mulher é vítima de feminicídio no Brasil”.

Ao falar sobre os desafios do papel, o ator destacou: “O maior desafio foi equilibrar as duas faces do Wellington: a vulnerabilidade de alguém que carrega um histórico de dor e rejeição, e a agressividade que surge como uma resposta tóxica ao seu medo de perder o controle. Encontrar essa dualidade foi fundamental para humanizar o personagem, sem justificar seus atos, mas mostrando que ele é fruto de uma construção emocional distorcida”.

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Set de gravação. — Foto: Lumelo/Agência Um Nome

Para Rainer, a violência doméstica retratada em “Dia Útil” reflete tanto questões individuais quanto sociais. “A violência doméstica e o abuso de poder refletem uma estrutura social que normatiza o controle e a opressão, especialmente contra mulheres. Mas o longa também mergulha no lado individual, explorando como traumas e contextos específicos podem levar alguém a reproduzir esses comportamentos. É um tema complexo e necessário, que vai além do indivíduo e expõe uma questão sistêmica”.

O ator comentou ainda sobre como o filme expõe as dinâmicas de poder na classe média brasileira: “Essa relação reflete muito as tensões e dinâmicas de poder presentes em muitos lares brasileiros. Na classe média, muitas vezes há uma tentativa de manter aparências, o que pode mascarar relações abusivas. O filme expõe como as desigualdades, não apenas econômicas, mas de gênero e controle, podem se manifestar nas relações familiares. Wellington tenta retomar um poder que ele acredita ser seu, o que revela muito sobre a masculinidade tóxica na nossa sociedade”.

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Foto: Lumelo/Agência Um Nome

Rainer concluiu destacando o papel transformador do cinema: “Sem dúvida! O cinema tem o poder de gerar empatia e questionamentos profundos. ‘Dia Útil’ contribui ao expor uma realidade que muitas vezes é silenciada, dando visibilidade às consequências da violência doméstica e do feminicídio. Mais do que entreter, o filme provoca reflexões e debates que podem, quem sabe, levar a uma transformação social. É um trabalho que me honra fazer parte, porque traz à tona questões urgentes que precisam ser discutidas”.

Gabriela Correa, com atuações marcantes em filmes como “Virgínia e Adelaide”, de Jorge Furtado, e na série “Bom Dia, Verônica”, dá vida a uma Dagmar complexa, em um retrato visceral de coragem e resistência. Já Rainer Cadete, reconhecido por personagens icônicos em novelas como “Terra e Paixão” e “Verdades Secretas”, incorpora Wellington, um agressor cujos conflitos internos adicionam camadas à história.

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Fernanda Jacob e Thaia Perez. — Foto: Lumelo/Agência Um Nome

O elenco principal também inclui Thaia Perez, Paula Otero e Bruno Gadiol. Este último, conhecido por sua carreira como ator e cantor, dá vida a Cadu Marques, enquanto Paula estreia no cinema como Alice Marques. O longa é enriquecido ainda pela direção de arte de Maíra Carvalho, a fotografia de Michele Diniz e o desenho de som de Olívia Hernández, reunindo um time premiado nos bastidores.

“Dia Útil” teve suas filmagens realizadas entre agosto e setembro de 2024, em Brasília, gerando cerca de 80 empregos diretos e 100 indiretos. O projeto, que vem sendo desenvolvido desde 2020, passou por uma série de laboratórios de cinema na América Latina e conquistou importantes prêmios em eventos como o Sapcine, na Colômbia, e o Bolivia Lab. A produção é assinada pela Stelios Produções e Griô Produções, em parceria com a Minka Filmes e a Reprodutora, contando com recursos do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal e da Lei Paulo Gustavo.

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Ensaios making of. — Foto: Lumelo/Agência Um Nome

Sobre a relevância do cinema como forma de refletir a sociedade, Gabriela afirma: “Tenho a impressão de que essas narrativas estão ocupando cada vez mais espaço na opinião pública e o público precisa mesmo ser exposto a temas como violência contra as mulheres, racismo, LGBTQIAPN+ fobia. Acho que a realidade é alarmante, principalmente com o avanço da extrema direita em todas as esferas da sociedade. Eu tento sempre encontrar isso nos projetos que me envolvo, e acho que é um desafio. Encontrar roteiros que coloquem essas narrativas em foco e, não só isso, como também dar vida a personagens complexas e interessantes, com tramas que contemplem nossas dores, mas também nosso talento, nossa alegria, beleza, nossa humanidade”.

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