O Auto da Compadecida 2 celebra a brasilidade e desafia o legado

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Nos últimos 20 anos, João Grilo e Chicó, interpretados por Selton Mello e Matheus Nachtergaele, passaram de simples personagens a ícones da dramaturgia nacional. Suas peripécias, que no início eram apenas risos e dramas do nordeste, hoje são parte do nosso imaginário coletivo, conquistando uma audiência renovada a cada reprise na TV aberta. O retorno de “O Auto da Compadecida”, com sua sequência, traz a inevitável sensação de rever o passado, mas agora com a missão de expandir a lenda, sem que ela perca sua essência.

Ao se lançar nesse novo capítulo, a sequência depara-se com a difícil tarefa de agradar os fãs, mantendo o que há de mais clássico na relação entre João Grilo e Chicó, mas ao mesmo tempo trazendo um frescor necessário. E é nesse jogo de acertos e erros que o filme consegue tanto encantar quanto confundir o público, dando espaço para a nostalgia, mas também para os tropeços de uma tentativa de renovação. Não sabemos bem como ou por que, mas tudo parece acontecer como uma das muitas mentiras que Chicó sempre nos conta – verdadeiras, mas com aquele toque de absurdo inegável.

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Foto: Divulgação/H2O Films

O roteiro, assinado a quatro mãos, tenta equilibrar as expectativas com a proposta de resgatar o espírito original da obra de Ariano Suassuna, sem deixar de olhar para o futuro. Mas entre manter a tradição e criar algo novo, o filme acaba se sobrecarregando. Novos personagens surgem e a trama ganha contornos mais complexos, mas sem um foco claro, deixando o espectador um pouco perdido, especialmente no primeiro terço da narrativa.

O elenco, por sua vez, é a grande força da película. Em boa parte, o que mantém o charme de “O Auto da Compadecida 2” são os atores. Cada um deles, visivelmente imerso no projeto, traz à tona a teatralidade necessária para manter a alma da história viva. A amizade entre João Grilo e Chicó, por exemplo, ainda carrega aquele tom de saudade que arrebata o público. É essa química que torna as novas confusões de Taperoá cativantes, mesmo quando o roteiro parece apressado ou desajustado.

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Foto: Divulgação/H2O Films

Selton Mello e Matheus Nachtergaele conseguem mais uma vez capturar a essência de João Grilo e Chicó, entregando performances carregadas de carisma e profundidade. Mello traz o humor e a doçura que o personagem exige, enquanto Nachtergaele, com seu charme único, traduz a complexidade de Chicó, sempre entre o cômico e o dramático. Além deles, o elenco de apoio se destaca, com figuras como Taís Araújo, que interpreta a Compadecida, imbuindo sua personagem com uma força única. O entrosamento entre todos os atores transparece a diversão no set, resultando em interpretações que, longe de se limitarem a meras caricaturas, oferecem uma humanidade genuína aos personagens.

O visual do filme também se distancia do primeiro. Se no primeiro ‘Auto’ a estética era mais crua e realista, agora o filme opta por um design de produção mais ousado, com o uso de animação em stop motion e a computação gráfica para criar uma atmosfera mais fantástica. Esse novo tom, menos realista, parece um eco das próprias invenções de Chicó. De certa forma, é como se a narrativa tivesse abraçado o surrealismo e o encantamento de suas mentiras como uma verdade própria.

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Foto: Divulgação/H2O Films

No entanto, é o comentário social que permanece como uma constante. A disputa entre coronéis e o avanço da mídia nos anos 50 surge como uma crítica direta aos dilemas políticos e sociais do Brasil, dialogando com as tensões contemporâneas. Mas, assim como no primeiro filme, é a abordagem religiosa que se torna o ponto de maior reflexão. A figura de João Grilo diante de uma Compadecida, agora interpretada por Taís Araújo, é um reflexo das contradições e fragilidades humanas, aprofundando a alegoria da fé e do poder.

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Foto: Divulgação/H2O Films

E, apesar de tentar se reinventar, o filme acaba se tornando previsível. A fórmula se repete, com momentos de grande comoção, mas também de redundância. No entanto, é justamente nesse equilíbrio entre o familiar e o novo que Matheus Nachtergaele se destaca, como sempre, proporcionando ao público a profundidade de João Grilo, que mesmo nos momentos mais cômicos, esconde uma sabedoria imensa.

O longa chega num momento de celebração do cinema brasileiro, quando a produção nacional se reinventa e é aplaudida no cenário internacional. Mais do que uma simples sequência, o filme se apresenta como um resgate cultural, um retorno a personagens que falam da brasilidade em tempos conturbados. Ao trazer de volta esse par de amigos, o filme nos oferece uma forma de relembrar um Brasil mais inocente, ao mesmo tempo em que nos confronta com o presente, marcado por uma crise de identidade e um cenário de polarização.

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Foto: Divulgação/H2O Films

Conclusão

Embora “O Auto da Compadecida 2” não consiga igualar a magnitude do filme original, e explore de forma tímida as possibilidades que o universo de João Grilo e Chicó oferece, é, sem dúvida, um reencontro importante e muito bem-vindo. Uma viagem de volta ao sertão e aos velhos amigos, que se tornou um pedacinho da memória afetiva do Brasil no século 21.

Confira o trailer:

Ficha Técnica
Direção: Flávia Lacerda e Guel Arraes;
Roteiro: Guel Arraes e João Falcão;
Elenco: Matheus Nachtergaele, Selton Mello, Taís Araujo, Humberto Martins, Luis Miranda, Eduardo Sterblitch, Fabiula Nascimento, Virginia Cavendish, Enrique Diaz;
Gênero: Comédia;
Duração: 114 minutos;
Distribuição: H2O Films;
Classificação indicativa: 12 anos;
Assistiu à cabine de imprensa a convite da Espaço Z

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