
(Foto: Haynie C./Pixabay
No meio universitário não se discute mais se o jornalismo é imparcial. Há um consenso de que a isenção informativa é impossível, mas nas redações e nos departamentos de marketing da imprensa ainda prevalece o mantra de que a isenção é uma característica intrínseca do noticiário. Esta divergência já contamina uma parcela considerável do público gerando uma grande incerteza entre as pessoas comuns que durante décadas aceitaram sem questionamentos a ideia de que a imprensa é imparcial, por natureza.
São cada vez mais frequentes artigos, entrevistas e polêmicas declarações qualificando a imparcialidade e objetividade como mitos, sem base científica. A grande imprensa evita o tema temendo que o questionamento da sua imparcialidade prejudique o esforço para minimizar a intensa migração de público e de anunciantes para as plataformas digitais na internet.
A defesa da imparcialidade jornalística está discretamente escondida através da ênfase que a grande imprensa passou a dar à técnica jornalística de ouvir os dois lados numa reportagem ou comentário. Acontece que o chamado “dois ladismos” (1) também é contestado porque simplifica a realidade a apenas duas abordagens e raramente as duas versões recebem o mesmo tratamento, tanto em tempo como em profundidade, como pode ser visto diariamente nos telejornais da Rede Globo.
As origens de um mito
O mito da objetividade é uma consequência da evolução das chamadas ciências da cognição, que estudam os processos pelos quais as pessoas incorporam dados da realidade à sua memória individual para desenvolver comportamentos e ideias. Todos nós percebemos o mundo que nos cerca através dos nossos cinco sentidos. Os dados captados pela visão, audição, olfato, paladar e tato são incorporados à nossa memória, onde são recombinados e remixados com informações memorizadas anteriormente.
É nesta recombinação que está a chave da desmistificação da objetividade jornalística. Cada indivíduo desenvolve ao longo do tempo um conjunto muito particular de percepções da realidade material e imaterial do mundo em que vivemos. Isto faz com que cada pessoa tenha uma experiência de vida diferente porque temos distintas heranças culturais, influências geográficas, níveis econômicos e educacionais, só para citar as principais diferenças.
Assim, é inevitável que cada notícia, comentário ou reportagem produzida por um jornalista acabe influenciada pelo conjunto de conhecimentos, vivencias e percepções acumuladas pelo profissional ao longo de sua vida. Logo, também é inevitável que sempre exista uma diferença entre o que o jornalista viu, ouviu ou sentiu e a realidade.
O jornalista é quem escolhe o enfoque dado a uma notícia, reportagem ou comentário. Ele seleciona também o contexto, os entrevistados, as fontes consultadas e o que não será divulgado. Todas estas decisões são influenciadas por variáveis pessoais como experiência profissional, cultura, nível econômico, origem étnica, localização geográfica, idade e sexo, do repórter, editor ou comentarista.
Impor uma determinada visão de mundo como sendo a única confiável equivale a falsificar a verdade e induzir outras pessoas ao erro na avaliação da realidade. A negação da diversidade de pontos de vista na forma de ver o mundo por parte da imprensa e do jornalismo estimula a formação de bolhas informativas, ou seja, grupos de pessoas que se relacionam porque têm visões de mundo parecidas e rejeitam quem discorda delas. Já foi provado cientificamente (2) que estes guetos informativos tendem ao radicalismo e isolamento transformando o espaço público de debates num campo de batalha ao invés de um ambiente para troca e recombinação de conhecimentos.
A convivência com a dúvida
Quando mais e mais pessoas passam a perceber que a imparcialidade jornalística é um mito, elas são levadas a conviver com uma dúvida inquietante. Como então ler uma notícia, olhar uma foto ou assistir uma vídeo-reportagem se não se pode mais encará-la como a reprodução fiel da realidade? A única resposta possível a esta pergunta é a de que teremos que aprender a conviver, na área do jornalismo, com a relativização das notícias. Isto significa que precisaremos julgar uma notícia não mais com base em categorias como verdadeiro ou falso, mas com a preocupação em procurar mais de uma versão sobre o mesmo dado, fato ou evento publicado na imprensa.
Caminhamos para um sistema em que tanto os produtores como os consumidores de notícias acabarão desenvolvendo novos parâmetros no trato e avaliação das informações. Será indispensável situá-las, da forma mais ampla possível, no seu contexto específico e simultaneamente incorporar o perfil e a experiência dos profissionais que as produziram. Será muito difícil para um jornalista cobrir todos os lados de uma notícia com a mesma extensão e profundidade, o que obrigará o profissional a reconhecer as limitações a que está sujeito e admitir a possibilidade do seu trabalho incorporar algum viés.
A publicação do currículo profissional nestas condições é um item obrigatório, muito mais importante do que os chamados “disclaimers” (3) publicados atualmente onde o jornalista revela se tem ou não ligações com os atores principais de uma notícia ou reportagem. O mesmo ocorre com a transparência nos objetivos e métodos usados na produção do material publicado.
Tudo isto indica a necessidade de uma forte dose de humildade profissional, determinada não por deficiências técnicas do jornalista, mas pela crescente complexidade do ambiente informativo em que vivemos. Não está em questão a capacitação dos profissionais, mas o reconhecimento de que as condições técnicas, humanas e econômicas para o exercício do jornalismo mudaram radicalmente e que a sobrevivência da atividade depende de ajustes aos novos ecossistemas informativos.
Como recém estamos nas primeiras etapas desta profunda transformação no modo como nos relacionamos com a notícia, ainda há muita coisa a ser estudada e principalmente testada. Também já dá para prever que como a mudança afeta tanto os jornalistas como o público torna-se compulsória a colaboração entre estes dois atores no processo de comunicação. Recriminações mútuas apenas tornam a transição para o novo modelo mais tensa, demorada e imperfeita.
- Expressão baseada no jargão inglês bothsidesism, usada nos meios jornalísticos e acadêmicos dos Estados Unidos.
- Ver livro Going to Extremes (sem tradução em português), do professor norte-americano Cass Sunstein.
- Termo que expressa o desejo do jornalista de esclarecer suas ligações empregatícias, políticas, religiosas ou familiares pessoas entrevistadas ou citadas na notícia, reportagem ou comentário.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.
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