Série Adolescência – Parte 1 de 4

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As próximas quatro colunas foram gentilmente escritas pelas professoras Heloisa de Vivo, Ângela Anastácio e pelo professor Vitor Barros, da Unieuro. Elas se dedicam a discutir uma temática que tem gerado intensos debates nas últimas semanas: a série Adolescência.

Adolescência é um problema silencioso desvelado: a misoginia ensinada

Jamie tem 13 anos. Seus pais demonstram afeto, seu quarto é comum, sua escola, boa. Nada, à primeira vista, sugere que ele seria capaz de matar alguém — muito menos Katie, sua colega de classe. Mas ele mata. Com frieza. E se entrega. É assim que Adolescência, a minissérie britânica da Netflix, rompe o pacto de silêncio em torno de um fenômeno crescente, mas ainda banalizado: o ensino cotidiano da misoginia.

Ao contrário das narrativas que apostam no mistério do “quem matou?”, a série propõe outra pergunta: “Como um menino de 13 anos aprendeu a odiar uma menina a ponto de matá-la?”. A resposta não está apenas na faca ou na ausência de suporte psicológico, mas no caldo cultural que transforma o ódio nas mulheres em identidade, pertencimento — e, por vezes, destino.

A misoginia não nasce nos recantos escuros da internet. Ela começa em ambientes claros: à mesa do almoço, na sala de aula, no vestiário, no TikTok. Começa nas piadas “inocentes”, no silenciamento de meninas que ousam discordar, na glorificação da dominação masculina como sinônimo de valor. E ela é ensinada. Cotidianamente. Em silêncio.

A série mostra como Jamie é capturado por fóruns e redes que o convencem de que sua dor é culpa das meninas — especialmente de Katie, que ousa não corresponder às suas expectativas afetivas. Essa construção simbólica é o cerne da cultura incel, da mesosfera e do universo red pill: discursos que oferecem aos meninos ressentidos uma explicação simples — e perigosa — para uma adolescência complexa: a culpa é das mulheres.

A pedagogia da misoginia digital

Na adolescência, o algoritmo ensina mais rápido que o professor — e com mais afeto. Se Jamie passa horas no quarto, sozinho, tentando entender por que não é admirado, o conteúdo que o encontra responde: “Você é um alfa incompreendido”, “As mulheres são manipuladoras”, “Você precisa se impor”.

Essa pedagogia do ódio é eficaz. E mais: oferece pertencimento a quem se sente sozinho. Grupos misóginos se tornam famílias simbólicas, com líderes carismáticos que prometem “a verdade” e convocam uma guerra contra o “feminismo inimigo”.

Nesses contextos, a misoginia deixa de ser apenas uma ideologia: vira terapia, antídoto para a frustração e projeto de vida. É por isso que tantos meninos aderem. E é por isso que tantos pais e mães não percebem o perigo.

O afeto ausente que não percebe os sinais

A família de Jamie não é disfuncional. Ela é comum. E é justamente isso que a série escancara: o afeto genérico não é suficiente. É preciso atenção, escuta, presença real. É preciso saber o que os filhos consomem, pensam, sentem — não para controlar, mas para acompanhar.

Jamie dá sinais: isolamento, irritabilidade, comentários ríspidos, distanciamento emocional. Mas todos acham que é “só uma fase”. Ninguém vê que o menino está se desumanizando em silêncio.

Essa cegueira afetiva é recorrente. Muitos pais confundem a ausência de problemas escolares com bem-estar emocional. Mas a saúde mental não se mede por boletins. O afeto verdadeiro exige tempo, disponibilidade e escuta ética — aquela que acolhe sem julgar, corrige sem humilhar e dá nome ao que está sendo vivido.

Um dos núcleos da misoginia adolescente é a dificuldade em lidar com a frustração. Quando Jamie não é correspondido por Katie, ele não apenas se entristece — sente que lhe foi “tirado” algo. Essa é a raiz simbólica da misoginia: a ideia de que o desejo do homem deve ser atendido. Quando não é, o “não” vira ataque, e o ataque, resposta.

Isso não nasce com Jamie. Nasce com a cultura patriarcal que ensina meninos a não sentirem, a não chorarem, a não se frustrarem — ou melhor, a sentirem apenas raiva. Raiva das mulheres, dos pais, da escola, de si mesmos.

A masculinidade tóxica é uma prisão: sufoca o afeto, a dúvida, a escuta. E transforma a adolescência num campo de guerra entre quem o menino é e quem acha que deveria ser.

O que a Psicologia tem a dizer?

A ciência psicológica já acumula evidências sólidas sobre o papel da educação emocional na prevenção da violência. Ensinar meninos a nomear emoções, lidar com rejeições e construir vínculos não é “mimá-los”. É salvá-los — e, em muitos casos, salvar também as meninas.

A prevenção começa cedo:

  • Contrato familiar: estabelecer valores, escutar com atenção e ter conversas reais sobre sentimentos e limites;

  • Mediação ativa das redes sociais: supervisionar e debater o conteúdo consumido sem demonizar a internet;

  • Psicoterapia preventiva: buscar acompanhamento como cuidado contínuo, não apenas em crises;

  • Educação para a equidade de gênero nas escolas: trabalhar afetos, direitos humanos, sexualidade crítica e não-violência desde a infância;

  • Grupos reflexivos para meninos: criar espaços de escuta, acolhimento e revisão das masculinidades.

Jamie não é um monstro. Ele é o resultado de muitas negligências cotidianas, de mensagens não percebidas, de uma cultura que ensina meninos a odiar mulheres antes mesmo de saberem o que é amar.

A série Adolescência escancara o que acontece quando o silêncio vira norma e o afeto se esconde atrás da distração. Mas também nos convida a romper esse ciclo: a conversar, perguntar e acompanhar de verdade.

Não se trata de vigiar meninos. Trata-se de educá-los com presença, escuta e coragem — porque, sim, a misoginia é ensinada. Mas o respeito também.

Até a próxima.

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