Levanta-e-corta no jornalismo brasileiro: o tema das câmeras corporais

(Foto: Gary Pearce/Pixabay)

A obrigatoriedade por força da lei do uso de câmeras corporais pelas forças de segurança no Brasil pode ser considerada atualmente uma demanda consensual da sociedade civil.

Esse consenso se manifesta em duas dimensões. Por um lado, manifesta-se sob a perspectiva da cidadania, já que a sociedade quer ter seus direitos constitucionais fundamentais respeitados, o que hoje, em função de registros justamente em vídeo (mas de terceiros), se percebe que não tem acontecido. Basta lembrar casos recentes como o de um motociclista jogado de uma ponte pela Polícia Militar de São Paulo (fato ocorrido 2 de dezembro de 2024) ou o de um motociclista derrubado a paulada pela Polícia Militar de Minas Gerais (fato ocorrido em 18 de dezembro de 2024).

Por outro lado, manifesta-se sob a perspectiva do capitalismo, uma vez que a propriedade privada (e, obviamente, a acumulação de capital) só é possível com a existência de forças de segurança. Não por acaso, câmeras corporais passaram a ser empregadas por agentes de segurança privada em centros comerciais. Nessa segunda perspectiva se enquadra também o modelo do capitalismo de vigilância (Shoshana Zuboff, The Age of Surveillance Capitalism: the Fight for a Human Future at the New Frontier of Power, 2018), novo estágio do processo de acumulação do capital em que se maneja o controle sobre o consumidor para além de vida pública, estendendo-se mesmo para a esfera da vida privada (como no caso de rastreamento sistemático – e comercializado! – de suas atividades nas redes sociais).

Mas como a mídia corporativa tem tratado esse tema em seus instrumentos de comunicação? A produção jornalística tem deixado transparecer nitidamente a existência desse consenso? Mesmo sendo ela própria parte do grande capital (como já tinha assinalado Nelson Werneck Sodré, na sua História da Imprensa no Brasil, de 1966), estaria ela atuando em causa própria, como seria o esperado? O que se constata, surpreendentemente, é um descompasso entre o consenso na sociedade civil e a sua representação na mídia. A causa? O levanta-e-corta.

No jogo de vôlei, mas também em outros como tênis de mesa e badminton, há uma técnica quase infalível de se obter ponto: o famoso levanta-e-corta. Um jogador dá um toque leve para levantar a bola e, em seguida, ele ou outro membro da equipe aplica uma cortada que faz a bola atravessar para o campo do adversário de forma devastadora, quase sem defesa possível.

O que tem a técnica do levanta-e-corta com o jornalismo? Muito. A ideia de dar atenção a um tema polêmico para então esvaziá-lo não é nova: é uma forma de abafamento de contradições que emergem no nível da consciência coletiva. O que importa aqui é com que forma específica isso tem se manifestado nas matérias sobre câmeras corporais.

Esse tema já circula na mídia brasileira há quase duas décadas, sendo provavelmente sua emergência na mídia decorrente da proposição do Projeto de Lei n. 1625-A, de 17/06/2008, que era voltado para câmeras de viaturas no Rio de Janeiro e que, depois de ser convertido na Lei Estadual n. 588, de 07/12/2009, foi estendido para câmeras corporais com a Lei Estadual no 9298/2021. Essa ampliação recente, bem como o atingimento de consenso, também deve decorrer certamente do avanço tecnológico, já que as câmeras corporais são hoje econômica e logisticamente viáveis aos entes da federação que têm sob seu comando forças de segurança (União, estados e municípios).

O tratamento do tema das câmeras corporais tem seguido um roteiro bastante recorrente na mídia. Como qualquer manual de jornalismo preconiza, jornalistas devem ouvir todas as partes envolvidas: no caso em questão, a sociedade civil e as forças de segurança. No entanto, é justamente como isso tem sido feito que chama a atenção. Normalmente as matérias têm uma chamada descrevendo de que se trata (o que são câmeras corporais, quem deve usá-las, a quem compete determinar seu uso etc.) e, em seguida, passa-se (quase sempre nesta ordem) à opinião de membros da sociedade civil (geralmente pessoas sem vínculo direto com o tema e depois acadêmicos e especialistas no tema) e à manifestação de membros das forças de segurança.

Esse roteiro quase fixo acaba naturalmente criando efeitos de sentido: sociedade civil primeiro e forças de segurança depois; sociedade civil levanta e forças de segurança cortam. O vício desse roteiro é que se acaba criando argumentação especular: os argumentos apresentados pela primeira parte são tratados pela segunda parte, que tem espaço para apresentar outros novos, que não serão examinados pela primeira, já que só se dá voz a cada parte uma vez em cada matéria. Não se trata, portanto, de construção dialética do sentido: é levanta-e-corta. Considerando que interessa à própria mídia corporativa (que é parte do grande capital) a adoção das câmeras corporais segundo já esclarecido acima, então como explicar a existência da prática do levanta-e-corta neste caso?

Uma possível explicação é uma questão cognitiva: sendo jornalistas membros da sociedade civil, sua origo (seu ponto de referência) é ela própria e, por isso, começa-se sempre por ela. Mas a consequência dessa prática é, contraditoriamente, a debilitação dos argumentos apresentados pela própria sociedade civil, já que, em função da contra-argumentação especular da segunda voz, quase pouco resta da força da manifestação da primeira ao final. Isso significa que, a bem das discussões de grande interesse para a sociedade civil, as matérias sobre o tema não deveriam seguir a estrutura fossilizada em que ela seja sempre a primeira voz. A alternância na ordenação das vozes é capaz de anular o efeito da argumentação especular que resulta em benefício sempre da segunda voz, da última voz. Não parece, ademais, que a dita estrutura fossilizada seja política deliberada da mídia corporativa, já que, neste caso, ela estaria atuando contra seus próprios interesses, que são os do grande capital.

O ano de 2025 será certamente o da discussão dos grandes temas da segurança pública: é isso que se prevê com base em diferentes atividades normativas efetuadas pela União (Portaria MJSP n. 648, de 28 de agosto de 2024, Decreto Federal n. 12.341, de 23 de dezembro de 2024 e Portaria MJSP n. 855, de 17 de janeiro de 2025) e pelo Congresso Nacional (Projeto de Lei n. 3.295, de 23 de agosto de 2024) recentemente e que, em função do consenso já existente na sociedade civil, há de resultar em avanço na direção da consolidação das garantias que efetivam os direitos constitucionais fundamentais – se a mídia corporativa não continuar viciando o debate, mesmo contra seus interesses.

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César Nardelli Cambraia é doutor em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo e professor titular na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

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