Como grupos de mídia tradicionais se movem no tabuleiro político partidário neoliberal no Brasil?

(Foto: letitiamperry/Pixabay)

Em colaboração ao artigo Grupo Globo, esquerda e extrema direita”, publicado na edição 1322 deste Observatório, de autoria do Professor Francisco Ladeira, é preciso esclarecer que “não há ironias tupiniquins” (acasos) no que diz respeito ao deslocamento de apoio por parte dos conglomerados de comunicação que praticam jornalismo, como a citada Rede Globo, em relação a grupos políticos partidários no Brasil. Ao que parece, o jogo (próprio) de interesses político-econômicos que sustenta todo o aparato ideológico da mídia hegemônica é o que a move no tabuleiro, e não a tão propalada “democracia” (que acaba por ser ponto relativo, quando estes interesses não são atendidos).

Quando se toma “democracia” partindo de generalizações, que tendem mais ao viés de uma radicalidade moral, de uma “mídia maléfica, antidemocrática” contra ou a favor de “governos populares”, o ponto de partida já se queima na largada pois se abre mão do pensamento crítico dialético baseado nas contradições sociais necessárias para analisarmos a realidade de cada momento histórico a partir da totalidade engendrada pela relação Estado, capital e trabalho.

O Estado Democrático de Direito (nosso arcabouço legal), do qual não podemos abrir mão em relação às suas conquistas para o êxito civilizatório, se efetiva dentro de uma democracia representativa que falseia a “possibilidade de escolha”, pois está fincada sob as bases do capitalismo neoliberal, onde a própria política é feita no mercado (lógica do “dinheiro”, fomentando competividade econômica, e não do interesse público) (DARDOT; LAVAL, 2016). Logo, a política como um sistema pretensamente republicano cederia seu lugar ao domínio das elites (econômica, financeira, midiática) sobre os explorados.

Atestar que o Grupo Globo faz parte do aparato ideológico que sustenta (e retroalimenta) o próprio sistema via discurso jornalístico virou clichê. A obviedade que não pode ser ocultada é que sua relação com os governos também se dá via mercado. Por outro lado, é preciso analisar criticamente o sentido do ‘popular’ no recorte dos dois governos contemporâneos citados (Lula e Dilma) pelo professor: é aquele com grande aceitação popular via voto? É aquele com grande aprovação popular durante ou após a governança? É aquele trajado com aparência populista (imagem, discurso, marketing)? Ou é aquele que, na materialidade dos fatos, escolhe enfrentar minimamente o capital e a favor da classe trabalhadora?

A “carga subjetiva” desta definição – num cenário de imposta polarização, que pode acabar induzindo a uma certa irracionalidade e influenciado pelas representações que nos vem mediadas pela própria imprensa tradicional – poderia ser substituída pela reflexão do que significa um governo neoliberal. Dá para ser neoliberal e a favor do povo, concomitantemente? Longe das questões ‘identitárias’ – as quais o Prof. Francisco Ladeira acertadamente menciona ao atrelá-las a um superficial progressismo – as diferenças (ou não) de períodos governistas específicos se dão via base econômica que sustenta o Estado neoliberal. No caso do Brasil, o chamado tripé macroeconômico.

Desde o Governo FHC (segunda metade dos anos 1990), todos os governos brasileiros vêm aplicando para “estabilidade” câmbio flutuante (variação livre da taxa de câmbio) + meta de inflação (governo e Banco Central – agora independente – definem a meta) + superávit primário (resultados positivos da subtração entre receitas e despesas do governo, excluindo os juros da dívida pública). Dívida sobre a qual a sociedade civil reivindica auditoria, pois sempre acionada como argumento pelo (s) governo (s) – mediado para o leitor/telespectador/ouvinte por um jornalismo econômico indecifrável às classes populares, diga-se de passagem – e em períodos de crise para justificar medidas austeras que acabam por prejudicar o desenvolvimento social afetando áreas como saúde, educação, segurança e, por consequência, o cidadão usuário destes serviços públicos (GOMES, 2020).

Não há nenhum governante eleito à chefia do Executivo nacional que ousou modificar ou redefinir tal tripé, ou há? Este é o primeiro ponto.

Siga a rota do dinheiro

Sempre bom relembrar criticamente que bilionários grupos de comunicação, como a Rede Globo, se constituem concentrações de propriedade privada – a base reprodutiva do sistema capitalista, aqui, no caso, de mídia – que detém várias empresas com diferentes veículos (mídia impressa, rádio, TV). Ao mesmo tempo, concentram propriedade territorial (geralmente na região Sudeste onde estão suas sedes) e descentralizam seu poder simbólico reproduzindo-o (abordagem vertical e elitista) via alcance/transmissão por meio de contratos de afiliação com conglomerados locais de norte a sul do país, monopolizando a informação (bem social público). Tal configuração é, inclusive, proibida pela Constituição Federal (Art.220).

A luta por um marco regulatório contra a concentração de propriedade de mídia tradicional vem sendo negligenciada desde os anos 1990, de forma conveniente, pelo Poder Legislativo Brasileiro. Levantamento do projeto Mídia sem Violação de Direitos, do coletivo Intervozes, mapeou 66 candidaturas nas eleições municipais de 2024, todas ligadas a programas de TV policialescos (uso político sob concessão pública) e, alguns destes, inclusive, de donos de mídia (DIAS, 2023), situação replicada no Congresso Nacional. Exemplo que reitera a necessidade deste marco regulatório que, agora, parece assunto varrido para debaixo do tapete com a (curiosamente, interessada) discussão pelos poderes da República sobre regulamentação das big techs cujo locus é a internet.

Outro ponto para ajudar a compreender que não é o “acaso” que motiva empresas de comunicação a “mudar de lado”. Trata-se, é claro, do financiamento público do sistema privado de mídia, vide a mídia técnica (Instrução Normativa Secom nº2/2009) para distribuição de recursos de publicidade oficial junto aos concessionários de rádio e televisão no Brasil. Se, por um lado, a compra pelos governos federais de espaço publicitário nos meios de comunicação – que, pelos “critérios técnicos”, como a audiência, sempre favorece os maiores grupos – por outro, gera críticas quanto à possível influência sobre a linha editorial dos jornais (produção noticiosa), pois, em tese, o jornalismo precisa ser independente de governos até por uma questão (vigilante) de fiscalização do poder público.

Informações fornecidas pela própria Secretaria de Comunicação do governo federal dão conta de um deslocamento da verba pública para outros grupos pelo ex-governo Jair Bolsonaro, e um “reabastecimento” da Rede Globo pela administração do presidente Lula, no início do mandato. No geral, o gasto total com publicidade governamental oficial saiu de R$633 milhões em 2022 (último ano do governo Bolsonaro) para R$451 milhões em 2023 (primeiro ano do governo Lula). Entretanto, o gasto com publicidade da Secretaria e dos Ministérios (Governo Federal) destinado à Rede Globo passou de R$89 milhões em 2022 para R$142 milhões em 2023. Neste aumento, a televisão – veículo de maior alcance popular, símbolo da concentração midiática no país – é priorizada com Globo e afiliadas detendo 56% de todos os anúncios televisivos (MAIA; MALI, 2024).

Por último, o terceiro ponto são as desonerações na folha de pagamento (Lei 12546/2011), benefícios fiscais que vem sendo concedidos pelos governos federais às gigantes do setor de comunicação, incluindo rádios, televisões e editoras. Em 2024, relatório do Dieese a pedido da Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), com base nos dados disponíveis entre janeiro e agosto, aponta que, do montante de R$ 462.131.652,31 (R$462 milhões) em isenções, a Globo Comunicação e Participações S/A (RJ) obteve cerca de R$150 milhões enquanto a Editora Globo (RJ), cerca de R$ 19 milhões – valores separados das empresas afiliadas ao Grupo que também foram à parte agraciadas.

Referências:

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DIAS, Mabel. Le Monde Diplomatique. Eleição de candidatos policialescos e donos de mídia prejudica a democracia. Publicado em 14.abr.2023. Disponível em: https://diplomatique.org.br/eleicao-de-candidatos-policialescos-e-donos-de-midia-prejudica-a-democracia/ . Acesso em 25. Jan. 2025.

FENAJ. Desoneração na Comunicação chega a 462 milhões em 2024, mas não gera novos empregos para jornalistas. Publicado em 18.dez.2024. Disponível em: https://fenaj.org.br/desoneracao-na-comunicacao-chega-a-r-462-milhoes-em-2024-mas-nao-gera-novos-empregos-para-jornalistas/  . Acesso em 25. Jan. 2025.

GOMES, Ciro. Projeto Nacional: o dever da esperança. São Paulo: LeYa Brasil, 2020.

MAIA, Matheus; MALI, Thiago. Poder 360. Governo Lula deu 60% de publicidade a mais do que Bolsonaro para Globo. Publicado em 5. Abr.2024. Disponível em:  https://www.poder360.com.br/governo/lula-deu-60-de-publicidade-a-mais-do-que-bolsonaro-para-globo/ . Acesso em 26. Jan.2025.

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Priscila Bueker Sarmento é jornalista, Mestra em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo e integrante do Núcleo de Pesquisa e Ação Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas, sistemas e transparência (UFES/CNPq).

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