Preconceito linguístico refletido em textos jornalísticos

(Foto: Kássia Melo/Pexels)

Em abril do ano passado foi lançado no Brasil, pela editora Tinta da China, o livro Assim nasceu uma língua: sobre as origens do português, de autoria do linguista Fernando Venâncio. O livro, que já era um sucesso de vendas e de crítica em Portugal, chegou aqui com prefácio do reconhecido linguista brasileiro Marcos Bagno e alcançou algum destaque nas mídias. Reportagens sobre o conteúdo do livro e com entrevistas do autor foram publicadas tanto na grande mídia, como a Veja, o G1 e a Folha de S. Paulo, quanto em blogs e sites da internet. Os dois formatos exploraram o conteúdo do livro, cada um à sua maneira, a partir de um formato de caça-cliques, formulando títulos imprecisos, que não refletem o verdadeiro debate linguístico presente na obra, mas que chamam a atenção do público pelo conteúdo inusitado. Além disso, as reportagens não extrapolaram o assunto, sem trazer um viés crítico e atualizado.

A tese principal do livro de Venâncio é a de que a língua portuguesa nasceu do galego e não do latim, argumentando contra um pensamento que leva em consideração uma certa pureza de origem latina do idioma. No entanto, há outro assunto que o linguista chama atenção e que foi tema das reportagens aqui no Brasil: a defesa de que a variante da língua portuguesa falada em nosso país será reconhecida como outro idioma nas próximas décadas. 

Este tema foi utilizado como chamariz do título das reportagens publicadas no G1 e na Folha de S. Paulo, baseadas em publicação da BBC News. A forma como o título foi publicado nos dois veículos – “’Em algumas décadas, idioma falado no Brasil se chamará brasileiro’, diz linguista português” – revela uma afirmação que pode ser entendida como verdade absoluta, a partir da chancela de um linguista renomado. Contudo, o assunto somente é retomado na última seção da reportagem, em que se desenvolve a questão linguística da variação e mudança das línguas. O texto aponta o processo de afastamento cultural de variantes distintas, como o português falado em Portugal e o falado no Brasil, e pondera os argumentos de linguistas e gramáticos, de que ainda há uma unidade muito grande entre os usos linguísticos dos dois países, principalmente no que se refere à variante culta. 

O título, que já tinha sido utilizado como uma espécie de isca na grande mídia, passou para um formato sensacionalista em blogs e vídeos da internet. No site CPG – Click Petróleo e Gás a reportagem foi anunciada dessa maneira: “Adeus, língua portuguesa! Brasil vai abandonar o português e adotar um novo idioma… Você está preparado?”. Este título afirma que o Brasil vai adotar outro idioma, sem fazer nenhuma referência às questões de variação e mudança linguística, como se o país fosse ser surpreendido com qualquer outra língua, diferente do português, a qualquer momento. A dúvida ainda é instigada pela expressão “adeus”, como se não fosse mais existir a língua portuguesa, e com a pergunta final, que questiona se o leitor estaria preparado para tal mudança.

Seguido do título, o texto traz a seguinte linha fina: “Brasil pode deixar de falar português e adotar um novo idioma! Entenda como as raízes históricas e culturais estão moldando um futuro para essa transformação surpreendente e inevitável”, reforçando novamente a ideia equivocada de aparição de um novo idioma, totalmente descolado da língua falada em território nacional. O texto segue com indagações imprecisas, ao dizer que o idioma que conhecemos irá “desaparecer” e ser “substituído” por “algo completamente novo”. Até que, finalmente, toca na questão da diversidade cultural e histórica e explica as questões linguísticas, que o autor debate no livro, de uma evolução natural das línguas e suas modificações e mudanças constantes e permanentes. 

Ao final ainda questiona: “Estamos realmente preparados para essa mudança? O que essa separação linguística significaria para a nossa identidade nacional?” e pede para que os leitores deem suas opiniões nos comentários. A pergunta, com tom enviesado, deixa pressuposto que a mudança de idioma não seria boa politicamente, ferindo a identidade nacional do país. A reportagem, com 329 comentários, foi replicada no canal do Youtube “Bora viajar pelo mundo”, contando com 625 visualizações e 9 comentários.

Este é um exemplo de textos jornalísticos publicados on-line, que trazem informações científicas imprecisas ligadas aos estudos linguísticos e que reforçam preconceitos linguísticos. Há nessas reportagens uma dificuldade em informar corretamente sobre o funcionamento linguístico dos idiomas, não levando em consideração as características das formações das línguas e descolados dos debates atuais. Nesse caso em específico, a imprecisão está no fato de confundir o que é uma língua nacional, a língua oficial do país, e as suas variantes linguísticas, ou seja, as diferentes formas em que as línguas são faladas, influenciadas pela cultura, região, classe social, entre outros fatores. 

Diante da polêmica levantada pelo linguista português, que se diz “não purista”, mas que defende o português do Brasil como uma simples variante do português de Portugal, o trabalho jornalístico de divulgação dessa temática poderia ser construído a partir de uma visão crítica sobre o assunto, levando em consideração os estudos realizados por linguistas brasileiros.

Recentemente, em 2022, foi publicado no Brasil o livro Latim em pó: um passeio pela formação do nosso português, de autoria de Caetano W. Galindo, professor de Linguística Histórica da Universidade Federal do Paraná. Neste livro, Galindo apresenta a formação da língua portuguesa a partir da história do Brasil e sua relação histórico-cultural de colonização. Ele aponta os processos históricos em que o idioma europeu foi transformado em território brasileiro e defende a língua como algo vivo, em constante transformação.

Em entrevista para o programa “Trilha de Letras”, da TV Brasil, por ocasião da última edição da Feira do Livro de São Paulo, em julho de 2024, Galindo relatou sua perspectiva sobre este assunto da nomenclatura da variante da língua portuguesa falada no Brasil e do idioma como representação de um Estado Nação. Segundo o linguista, essa problemática não é uma questão importante atualmente. Ela teve sua validade no século XIX, mas hoje em dia o que realmente interessa é a língua como patrimônio. Galindo relembra que a língua portuguesa é hoje a sexta mais falada no mundo e que esse fato só acontece por conta do Brasil. Portugal é um país com apenas dez milhões de habitantes e sem os falantes das antigas colônias jamais estaria entre as línguas com relevância econômica, política, diplomática e cultural do mundo. No entanto, o linguista assinala que mesmo com esses dados, o português brasileiro é visto como subalterno e que seus falantes se colocam muitas vezes rebaixados diante da própria língua.

Idiomas são um bem precioso politicamente para as elites e sempre haverá uma defesa de sua pureza. Porém, o professor defende que o registro da norma culta, apesar de ter seu lugar na sociedade, não pode funcionar como critério de exclusão. Boa parte da defesa de um afastamento da variante brasileira da língua portuguesa de Portugal passa por esse tipo de preconceito. Acredita-se, muitas vezes, que os falantes portugueses falam a língua correta e no Brasil há distorções e erros dessa língua pura. Isso não é verdade. Todas as variantes linguísticas, de qualquer idioma, estão em constante mudança, esse é o curso comum das línguas. O Brasil tem uma história linguística cultural singular e ela deve ser valorizada. Reportagens que não apontam esses questionamentos, acabam por enfatizar preconceitos e violências linguísticas, que não podem ser mais admitidos.

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Lívia Mendes é graduada em Letras e mestra em Estudos Literários pela Unesp/Araraquara, especialista em Jornalismo Científico pelo Labjor e doutora em Linguística pela Unicamp. Atualmente, é bolsista Mídia Ciência Fapesp.

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