COSA NOSTRA: Entenda a história da máfia italiana no RN

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Como a máfia siciliana enraizou suas operações em nosso estado? Investimentos que ultrapassam 800 milhões de reais no mercado imobiliário foram realizados por meio de uma engenhosa máquina de transferir e lavar dinheiro. A Cosa Nostra deixou no Rio Grande do Norte um rastro de golpes milionários, fraudes cartorárias, corrupção, grilagem de terras e dois assassinatos. Bem que poderia ser o roteiro de um filme policial, mas é um artigo que você começa a ler agora.

Era quase noite em Palermo, capital da Sicília, quando dois jovens, um deles com uma faca, entraram em uma pequena loja de produtos de limpeza na Via Altofonte. Depois de renderem os funcionários, os assaltantes levaram 4,5 mil euros que estavam na caixa registradora. Era 29 de agosto de 2019. Cinco dias depois, no mesmo horário, novo roubo na mesma loja: dois rapazes, fingindo estarem armados, levaram mais 2,8 mil euros.

O caminho natural do dono da loja seria procurar a polícia. Mas não foi o que aconteceu. Francesco Paolo Bagnasco preferiu telefonar para Giovanni Caruso, um membro da Cosa Nostra, organização mafiosa que desde o século XIX controla boa parte das relações socioeconômicas na Sicília. Ao analisarem imagens captadas por uma câmera de vídeo, os mafiosos identificaram três assaltantes (um deles havia participado dos dois roubos).

Na tarde de 7 de setembro, quatro dias após o segundo assalto, os três ladrões foram sequestrados e levados para um galpão. Caruso notificou o seu chefe, Giuseppe Calvaruso, bem como o dono da loja, e os três foram até o cativeiro, onde assistiram ao brutal espancamento dos assaltantes. Horas depois, Caruso descreveu, para outro membro da máfia, a face de um dos assaltantes, dizendo que parecia uma “peneira”. O dinheiro roubado foi devolvido a Francesco Bagnasco.

Sete meses depois, em abril de 2020, Bagnasco e outros cinco empresários recorreram a Calvaruso para adquirir nove partes de um grande armazém. Coube à máfia afastar outros pretensos concorrentes na compra do imóvel. Em troca, a Cosa Nostra exigiu uma taxa total de 90 mil euros – 40 mil a serem pagos apenas por Bagnasco por ele ter adquirido quatro partes do armazém. Foi a vez do empresário e seus sócios sentirem na pele a ira da máfia palermitana.

Em telefonema captado pela polícia italiana, Calvaruso ordenou que Caruso exigisse o dinheiro dos empresários antes que o negócio fosse formalizado em cartório. “Não tenha piedade”, disse o chefe. Bagnasco pagou, mas apenas uma parte – 15 mil euros. Em dezembro de 2020, Calvaruso reforçou as ameaças. “Se eles não me derem o dinheiro, tudo pode acontecer”, disse a Caruso. Em fevereiro de 2021, duas semanas antes da formalização do negócio no cartório, o chefe mafioso aumentou o tom das ameaças. “Se alguém ousar fazer a escritura sem ter pagado, não deixe ir ao cartório e meta um revólver na boca dele”, ordenou. Calvaruso falava de um lugar muito distante de Palermo, do outro lado do Oceano Atlântico – mais precisamente, de Natal, no Rio Grande do Norte.

Parte do dinheiro extorquido dos empresários custeou as despesas de familiares dos membros da Cosa Nostra que estão presos. Outra parte foi enviada ao Rio Grande do Norte, onde, ao longo de dezessete anos, sob o comando de Calvaruso, a máfia siciliana investiu 800 milhões de reais no mercado imobiliário por meio de uma engenhosa máquina de transferir e lavar dinheiro. Durante esse tempo, a Cosa Nostra deixou no estado nordestino um rastro de golpes milionários, fraudes cartorárias, corrupção, grilagem de terras e dois assassinatos.

Giuseppe Calvaruso tem cabelos castanho-claros, repartidos ao meio, e baixa estatura, o que lhe rendeu o apelido, entre os mafiosos sicilianos, de u curtu (o curto, literalmente, ou o baixote). Em 47 anos de vida, a maior parte atuando como empresário da construção civil, adquiriu o respeito da cúpula da Cosa Nostra, sobretudo depois de ter ajudado na fuga de Giovanni Motisi, no fim dos anos 1990. Motisi foi um dos mais sanguinários assassinos de aluguel de Salvatore “Totò” Riina, mafioso que aterrorizou a Sicília e foi o mandante dos assassinatos, em 1992, dos juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, responsáveis pelo Maxiprocesso de Palermo. Em 1993, Riina foi preso. Morreu em 2017, aos 87 anos.

Cada município da Sicília (ou, no caso das maiores cidades, cada bairro ou distrito) possui um líder mafioso, chamado capomandamento (mandamento é uma região controlada por determinado clã criminoso). Antonino Rotolo, o capomandamento de Pagliarelli, está preso desde 2006. Quem o substitui desde 2015 é Calvaruso, mas na condição de “regente”, como se chama o líder temporário. Em conversa interceptada pela polícia italiana, o regente disse ter à disposição cerca de 1 bilhão de dólares para investir.

Em fevereiro de 2009, Pietro Ladogana, um homem alto de queixo anguloso que, para a PF, era testa de ferro da Cosa Nostra, desembarcou em Natal. Na capital potiguar, ele fundou três empresas do ramo imobiliário, com um capital social total de 3,8 milhões de reais, e casou-se com Tamara Maria de Barros. A brasileira seria usada como laranja pelo italiano, que colocou no nome dela boa parte dos imóveis que adquiriu. 

Mas Ladogana também começou a grilar terras com o uso da violência. Chegou a criar uma milícia formada por policiais militares para expulsar moradores em Extremoz, município na Região Metropolitana de Natal, onde contava com a ajuda do então tabelião do cartório local e ex-prefeito João Soares de Souza, e de servidores da prefeitura para falsificar documentos que garantissem a posse dos imóveis. Quando o então secretário de Tributação de Extremoz Giovanni Gomes contrariou os interesses do esquema, Ladogana ordenou que um dos PMs de sua milícia, Alexandre Douglas Ferreira, “desse um susto nele” – como a mulher do mafioso contou à Polícia Civil. Gomes levou um tiro de raspão na perna quando saía da festa de formatura do filho, em uma noite de agosto de 2013.

No caso de outro desafeto, o desfecho foi trágico. O empresário italiano Enzo Albanese, que dirigia um time de rugby em Natal e não tinha relações com a Cosa Nostra, descobriu as fraudes fundiárias de Ladogana, bem como desvios de parte do dinheiro da máfia para o próprio bolso, e ameaçou denunciar tudo à polícia. Em março de 2014, Albanese foi ameaçado de morte, caso ousasse delatar seus esquemas. Mas ele não recuou. Em 2 de maio do mesmo ano, ele fechava o portão de entrada de sua casa quando o policial Ferreira se aproximou em uma moto e atirou. O italiano morreu no local. Um mês depois, a Justiça de Natal decretou a prisão preventiva de Ladogana, que foi detido no aeroporto de Roma, onde tentava embarcar para o Brasil com 120 mil euros escondidos na roupa. Acabou liberado meses depois, na Itália, e ficou no país natal. Tempos depois, recebeu uma pena de catorze anos de reclusão, que ele cumpre na penitenciária de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte. Ferreira não chegou a ser julgado – a Justiça o considerou inimputável, depois que foi diagnosticado com esquizofrenia.)

Em 2016, Calvaruso iniciou o processo de troca do operador da lavanderia de dinheiro da máfia no Brasil. Recorreu então ao empresário Giuseppe Bruno (foto no início do artigo), cuja família lavava dinheiro para a máfia desde os anos 1990 na construção civil da Sicília, de acordo com a polícia italiana.

Em Natal, Bruno e Calvaruso investiram 830 mil euros na compra de novas áreas nos arredores de Natal, inclusive uma fazenda que seria transformada em loteamento com perspectivas de ganhos milionários. “Gostaria de salientar que estamos falando de 180 hectares, onde há a possibilidade de construir cerca de 7.500 casas, que por 100 mil reais são 750 milhões de reais de faturamento, com um lucro residual de mais de 50%…”, escreveu Bruno, por e-mail, a um integrante da máfia na Sicília. No total, segundo o Ministério Público Federal, a máfia adquiriu 76 imóveis no Brasil.

Certo dia, em um shopping de Ponta Negra, local abastado da cidade, Bruno conheceu Sara da Silva Barros, de 37 anos de idade. Logo, ela se tornaria não só a mulher de Bruno, como sua testa de ferro preferida, já que não tinha antecedentes criminais. “Sara é cem por cento limpa”, escreveu ele para Calvaruso, por WhatsApp. Foi em nome dela que Bruno e Calvaruso montaram a pizzaria e cafeteria Italy’s, na orla de Natal. 

O policial e advogado Carlos Menezes conheceu Bruno em 2016, quando o italiano e Nino Spadaro foram até a Delegacia de Apoio e Assistência ao Turista (Deatur), em Natal, onde o então agente trabalhava, para fazerem um boletim de ocorrência contra João Soares de Souza, tabelião do cartório de imóveis de Extremoz, e seu filho, Gustavo Eugênio Costa de Souza. Segundo Bruno, o tabelião e o filho haviam falsificado a escritura de uma área de 29 hectares adquirida pela empresa Tecnobloco Construções Ltda., da qual o italiano se dizia sócio e procurador, para revendê-la a terceiros por 16 milhões de reais.

Por causa do alegado prejuízo pela perda do terreno, Bruno e Spadaro passaram a pressionar o tabelião, que se comprometeu a pagar 1,2 milhão de reais e a entregar outra área a eles. Mas Souza só pagou 150 mil reais, e os italianos descobriram que os documentos da área oferecida eram falsos.

Na discussão com os italianos, o tabelião ameaçou Bruno e seu advogado com um revólver, dentro do cartório de Extremoz, o que motivou um segundo boletim de ocorrência contra Souza, agora por ameaça, registrado pelo então policial Menezes no fim de 2017, na mesma Deatur. A aproximação com o policial fez com que este fosse convidado a trabalhar como segurança para a viagem que a mãe de Bruno fez da Itália ao Brasil.

Em março do ano seguinte, Souza e o filho foram denunciados à Justiça por estelionato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro, acusados de uma série de fraudes documentais. Souza morreu um mês depois, de causas naturais. Gustavo, seu filho, foi absolvido. Sem saída, Bruno ingressou com ação na Justiça contra o tabelião e o filho, e a 1ª Vara de Extremoz condenou o espólio de Souza e também Gustavo a indenizarem Bruno em 22 milhões de reais.

Retornando ao Brasil em 2019, Calvaruso, regente da Cosa Nostra, acelerou os investimentos da máfia. Concluiu a construção de uma casa dentro de um resort em Bananeiras, interior da Paraíba; comprou dois apartamentos em Cabedelo, município vizinho a João Pessoa; adquiriu duas empresas em Natal (uma delas dona de imóveis avaliados em quase 4 milhões de reais, no total) e fundou a pizzaria Italy’s. 

Em 2021, os primeiros policiais italianos desembarcaram em Natal para rastrear o patrimônio amealhado pela máfia e seguir de perto os passos de Giuseppe Bruno.

No ano seguinte, em maio, o governo italiano decidiu solicitar formalmente um acordo de cooperação com o Ministério Público Federal (MPF) brasileiro para “a obtenção de dados confiáveis sobre rastreabilidade dos grandes fluxos financeiros movidos da Itália para o Brasil e informações sobre bens atribuídos a Giuseppe Calvaruso e outros”. A investigação do MPF, da PF e da Receita Federal, iniciada em outubro de 2022, não só confirmou os dados já investigados desde a Itália como encontrou novas suspeitas sobre o patrimônio do trio Calvaruso-Ladogana-Bruno no Rio Grande do Norte. 

Em novembro de 2023, a PF encaminhou à Justiça os pedidos de prisões preventivas e de buscas. Em poucas semanas as requisições foram acatadas pela 14ª Vara Federal de Natal, mas a operação tinha de ser deflagrada ao mesmo tempo no Brasil e na Itália, onde havia outros participantes do esquema mafioso. A Justiça italiana demorou a conceder os pedidos de prisão (só o fez em agosto de 2024).

Bruno foi preso na manhã de 13 de agosto de 2024. No mesmo dia, a Direção Distrital Antimáfia de Palermo prendeu na Itália a mãe dele, Rosa Simoncini. No Brasil, nove pessoas, incluindo Calvaruso, Bruno e sua ex-mulher, Ladogana, sua ex-mulher, Tamara Barros, e a atual, Regina Souza, são réus em ação penal, ainda não julgada, na 14ª Vara Federal de Natal, acusados de associação criminosa e lavagem de dinheiro. Em dezembro passado, o inquérito da polícia italiana seguia em andamento.

O advogado de Calvaruso na Itália, Michele Giovinco, disse à revista piauí que a Justiça ainda não provou a responsabilidade do réu na suposta extorsão aos compradores do armazém na via Altofonte, em Palermo, nem na lavagem de dinheiro na compra e venda de imóveis no Brasil. “Não há provas processuais nas investigações italianas de transferência de dinheiro de Hong Kong ou Cingapura, nem para a Itália e nem para o Brasil”, afirmou.

Em nota, a defesa de Ladogana informou apenas que o patrimônio dele no Brasil “foi adquirido com muito trabalho” e que o empresário nunca teve envolvimento com a Cosa Nostra. Nino Spadaro não quis se manifestar. A defesa de Bruno não foi localizada.

A última ponta solta dos esquemas da máfia siciliana no Rio Grande do Norte é o assassinato de Carlos Antonio Lopes da Silva, o taxista que se tornou laranja de Pietro Ladogana e era dono formal de duas empresas e de dezenas de imóveis no estado. Mesmo depois da prisão do italiano, em 2019, Silva continuou próximo dele – era uma das pessoas autorizadas por Ladogana a visitá-lo na prisão em Alcaçuz.

Na noite de 1º de março de 2023, Silva dormia em sua casa no bairro Pitangui, em Extremoz, com a mulher e as duas filhas do casal, quando ouviu a porta da entrada sendo arrombada. Pegou um bastão e conseguiu atingir um dos invasores, mas acabou levando sete tiros de pistola de outro criminoso. Morreu ao lado da sua cama.

A principal suspeita da polícia é que Silva tenha sido morto a mando de um empresário potiguar que teria grilado parte dos terrenos da Cosa Nostra no estado. Responsável pelo inquérito, o delegado André Kay, titular da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa de Ceará-Mirim, não revela a identidade do suspeito para não atrapalhar as investigações. Passados quase dois anos do crime, o inquérito ainda não foi concluído.

 Revista Piauí

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