Brasil dificulta concessão de vistos a haitianos em meio a colapso humanitário no país

MAYARA PAIXÃO
BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS)

Doze anos após instituir uma polícia de concessão de vistos humanitários a cidadãos do Haiti que fogem da espiral de crises social, econômica e política que afetam o país, hoje em colapso humanitário, o Brasil dificultou a emissão dessas autorizações.

O país passa agora a atrelar a concessão dos vistos à existência de vagas em organizações que possam receber os imigrantes. Um edital será feito para selecionar as ONGs. É o chamado modelo de patrocínio comunitário, adotado para imigrantes do Afeganistão no ano passado.

A distribuição de vistos para haitianos virou um imbróglio operacional. Somente nos últimos quatro anos, a embaixada do Brasil em Porto Príncipe concedeu mais de 25 mil vistos humanitários. Muitos são de reunião familiar: para crianças, idosos e mulheres que buscam se reunir com seus parentes que já estão no Brasil.

Mas nem todas essas pessoas conseguem sair do Haiti. Com frequência, os aeroportos são fechados por temor de que a violência operada pelas gangues armadas atinja os voos, como já ocorreu. E quem consegue sair tem de desembolsar valores vultosos para pagar voos privados. É um estrangulamento logístico que dificulta qualquer saída.

O Brasil virou uma das únicas rotas de saída relativamente seguras, dado que a maioria dos países não recebe mais os haitianos. Os EUA chegaram a deportar imigrantes, mesmo em meio ao colapso social na nação caribenha. Já a vizinha República Dominicana deportou mais de 270 mil haitianos ao longo do último ano, alguns em jaulas.

Os pedidos chovem na diplomacia brasileira, mas a análise é difícil. Muitos haitianos, em especial crianças cujos pais tentam levar ao Brasil, não têm documentos básicos para comprovar parentesco.

O cenário levou a uma onda de judicialização de pedidos, inclusive com caso de advogados brasileiros que se aproveitam de imigrantes e são investigados.

Apenas no último ano o Ministério da Justiça recebeu 45 mil pedidos para agilizar processos de reunião familiar. Destes, 15 mil já foram autorizados -o que não significa que os vistos já foram emitidos.

A mudança do modelo de concessão, agora atrelando o visto a uma vaga para o imigrante em alguma organização que possa recebê-lo e ajudar a inseri-lo na sociedade, não foi bem vista por todos, nem dentro do governo. Alguns dizem que haitianos, diferentemente dos afegãos, já têm comunidades bem estabelecidas no Brasil, de modo que não precisariam de apoio de ONGs, e que o modelo apenas retarda a concessão do visto.

É o que diz o passado recente: o Brasil anunciou em setembro de 2023 que mudaria a sua política de vistos para afegãos que fogem do Talibã. Mas apenas um ano depois formalizou que ela se daria por meio do modelo de patrocínio comunitário. E, até hoje, o edital para selecionar as organizações do edital não foi concluído.

Por outro lado, também sob reserva, autoridades que estão diretamente envolvidas na formulação da política dizem que seu objetivo é garantir que haitianos possam criar raízes no Brasil e que o modelo antigo de acolhida não funciona. Um levantamento feito pelo governo e compartilhado com a reportagem mostra que apenas metade dos haitianos que entram no país permanece.

São rotas que aos poucos vão ganhando maior conhecimento. Muitos haitianos deixam o país rumo aos EUA por caminhos perigosos -como a Folha de S.Paulo revelou, por exemplo, milhares deles cruzam a chamada selva de Darién, floresta inóspita, junto a seus filhos que nasceram no Brasil.

A alteração na concessão de vistos ocorre às margens do agravamento constante da situação no Haiti. O país tenta ter instabilidade em um governo provisório estabelecido a duras penas (e constantemente desfalcado) até que haja condições mínimas para uma eleição, o que não ocorre desde 2016.

No ano passado, uma missão multinacional de forças de segurança acendeu alguma luz de esperança, mas suas dificuldades minguaram sua efetividade. Os policiais chegam a conta-gotas: no país estão cerca de 400 homens do Quênia aos quais se somaram pouco mais de 200 da Guatemala nos últimos dias.

A dificuldade é logística, dado que a capital Porto Príncipe é dominada por gangues, e orçamentária. Por isso os EUA têm pleiteado no Conselho de Segurança da ONU que a missão seja transformada em uma missão de paz da entidade.

Não é mera gramática. Se passar a seguir os moldes de uma missão de paz, a empreitada terá ao menos duas coisas fundamentais e hoje em falta: orçamento obrigatório proveniente dos países-membros e regras de engajamento (ou seja, de como os policiais podem atuar em um território estrangeiro) mais claras.

China e Rússia, membros permanentes do Conselho de Segurança, opõem-se por razões não tão claras, mas deduzíveis: primeiro, complicar as tentativas de Washington e, segundo, marcar oposição ao Haiti, um dos poucos países que reconhecem a independência de Taiwan -tópico mais que sensível para Pequim. O próprio governo haitiano já pediu, em carta, uma missão de paz.

Diplomatas envolvidos no tema que falam sob reserva dizem que o apoio em bloco dos países da América Latina e do Caribe para a missão de paz seria peça-chave. O Brasil não compõe a atual conformação do Conselho de Segurança, mas estaria disposto a apoiar a missão.

O presidente Lula (PT), cujo governo agora complica a concessão de vistos para os haitianos, disse no ano passado que é preciso agir rápido para ajudar o Haiti.

Mais da metade da população que ainda vive no país passa fome, segundo o Programa Mundial de Alimentos da ONU, e a organização já documentou nove assassinatos em massa no país apenas nos últimos três anos, o mais recente deles em dezembro, quando 207 pessoas, a maioria idosa, foi assassinada pela gangue Wharf Jeremie.

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