Ouvidor das polícias de SP: ‘Estamos vivendo a maior crise de segurança da história do estado’

pm sp02

Na reta final do seu mandato na Ouvidoria das Polícias de São Paulo, que termina em 24 de dezembro, após dois anos, Cláudio Aparecido Silva avalia que o Estado vive sua maior crise de segurança pública. Os casos de letalidade policial estão alta desde o início da gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). O ouvidor considera que, neste momento, o maior desafio é reduzir as mortes em decorrência da intervenção da Polícia Militar.

“Antes morriam apenas pretos, pobres e periféricos. Agora, a violência é tão sem medida que ela atinge a todos. A violência chegou num nível insuportável, o que acaba criando uma sensação de medo na população, medo de quem deveria protegê-la”, afirma ao Estadão.

Desde que assumiu, em dezembro de 2022, Cláudio tem uma relação distante com o Palácio dos Bandeirantes, especialmente com o secretário de Segurança, Guilherme Derrite, que segundo ele nunca demonstrou “vontade política” de dialogar com a Ouvidoria

“Quando você desconstrói os órgãos correcionais, você está mandando um recado para a tropa de que a impunidade vai prevalecer”, critica Cláudio.

Criada em 1995, Ouvidoria das Polícias tem como atribuição reunir “denúncias, reclamações e representações sobre atos considerados arbitrários, desonestos, indecorosos ou que violem os direitos humanos individuais ou coletivos praticados por servidores civis e militares da Secretaria da Segurança Pública”

Recentemente, o Governo de São Paulo anunciou a criação de uma nova ouvidoria, a Ouvidoria da Segurança Pública, diretamente subordinada ao secretário de Segurança, que será responsável pela nomeação do ouvidor, o que levantou questionamentos sobre a independência do órgão.

“É mais um passo no sentido fortalecer a arbitrariedade e a violência”, afirma Cláudio. “A nossa Ouvidoria foi criada por lei. Nós sim somos a Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública “

Antes de encerrar o mandato, o ouvidor busca viabilizar a criação de um grupo de trabalho interinstitucional para debater as políticas de segurança. A ideia é reunir representantes da Defensoria Pública, Ministério Público, Polícia Militar, Polícia Civil, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana e da sociedade civil. A proposta foi apresentada nesta sexta-feira, 6, ao procurador-geral de Justiça de São Paulo Paulo Sérgio de Oliveira.

“O Ministério Público tem estado um tanto ausente no último período no que diz respeito aos debates que a gente tem feito”, avalia. “Precisamos discutir os caminhos que a gente precisa percorrer para voltar à normalidade na política de Segurança Pública do Estado de São Paulo.”

Na semana passada, o governador recuou e admitiu que errou ao criticar as câmeras corporais. Tarcísio prometeu ampliar o programa Olho Vivo. “Para além de falar, a gente quer presenciar os atos e quer que essa política efetivamente ocorra”, afirma o ouvidor.

Leia a entrevista completa:

O aumento da letalidade policial é o maior problema na Polícia Militar de São Paulo hoje?

A letalidade é um tema muito relevante no que se respeito ao debate de segurança pública. O nosso sonho é que a gente consiga cruzar um ano sem que a polícia precise praticar uma morte. Inclusive, a própria nossa carta constitucional define que o nosso bem maior é a vida. A gente avalia que o maior desafio é a defesa da vida efetivamente. E o que a gente está vivendo em São Paulo é algo muito absurdo. Eu acredito que nós estamos vivendo a maior crise de segurança da história do Estado. E a pergunta que a gente faz é: onde que está o secretário de Segurança? Está difícil de conviver com esse espiral de medo que produz uma roleta da morte. Até 2022, por exemplo, a gente vinha numa tendência forte de queda das mortes decorrentes de intervenção policial, com alta profissionalização da polícia, melhoria de estruturas de controle interno da tropa, uso de tecnologia, tudo isso vinha colaborando para a redução das mortes. Foram 415 mortes em 2022, o menor número da história. E aí em 2023 a gente quebra esse ciclo de queda e as mortes voltam a crescer de novo, sendo que em 2024 a gente se encontra nesse caos. Veja que antes morriam apenas pretos, pobres e periféricos. Agora, a violência é tão sem medida que ela atinge a todos. A violência chegou num nível insuportável, o que acaba criando uma sensação de medo na população, medo de quem deveria protegê-la.

O Grupo de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público oficiou o comandante da PM com uma recomendação para ele emitir uma mensagem pública à tropa cobrando respeito aos protocolos e normas de abordagem para evitar a violência e a letalidade. O senhor concorda que falta um comando mais claro do governo nesse sentido?

Falta mais do que comando, falta comportamento, postura, tomada de decisão. O ofício do Gaesp (Grupo de Atuação Especial de Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial) é insuficiente. Veja o que fizeram com a Corregedoria. O Corregedor precisa pedir autorização para o Comandante-Geral da PM para abrir uma apuração contra um policial. Asfixiaram a Corregedoria. O Corregedor cortou as relações institucionais com a Ouvidoria. Hoje, o fluxo de contato é apenas via processo SEI. Não tem um contato, não tem uma ligação. O telefone do oficial de permanência da Corregedoria, que era aquele oficial que ficava 24 horas por dia na Corregedoria e recebia todas as ocorrências que tivessem gerado algum conflito, morte, violência, qualquer coisa nesse sentido, esse telefone não existe mais. Eles desconstruíram o órgão correcional. E, quando você desconstrói os órgãos correcionais, você está mandando um recado para a tropa de que a impunidade vai prevalecer.

Em algum momento o governo se mostrou aberto a dialogar e a considerar sugestões da Ouvidoria?

O Derrite tentou construir uma relação de que a Ouvidoria era o tapete e ele era quem pisava no tapete. E isso a gente não aceitou, porque a lei que institui a Ouvidoria da Polícia dá autonomia e independência para a Ouvidoria atuar. A gente aceita dialogar. Eu nunca me neguei a dialogar com o Derrite. Enquanto o Derrite for vivo e nós também, nós vamos acreditar que ele é um ser humano passível de fazer autocrítica, entender que errou e que topa conversar. Até o último dia do meu mandato eu estou disposto a dialogar com o Derrite, com o governador, com as forças de segurança. Agora, eu nunca percebi vontade política desse governo para que isso ocorra. O Derrite proibiu os comandantes de batalhões de me convidarem para atividades da polícia, atividades festivas, aniversário de batalhão, formação de turmas. Ninguém me convida para mais nada porque o Derrite não quer que eu vá. É nesse nível.

O senhor concorda com a avaliação da OAB de que a nova Ouvidoria de Segurança é uma tentativa de esvaziar o trabalho independente feito na Ouvidoria das Polícias e de controlar esse novo órgão?

Esse órgão tem total coerência com a postura do secretário de Segurança Pública. A criação da Ouvidoria da Segurança Pública é mais um passo no sentido fortalecer a arbitrariedade e a violência. O que ele está mandando de mensagem para os policiais é o seguinte: “Sabe aquele órgão, o único órgão que tem feito um contraponto à violência que vocês estão praticando? Então, nesse momento, eu vou passar a atacar ele. Nesse momento, eu vou deslegitimá-lo, vou esvaziá-lo. Vou contribuir para que as pessoas se confundam e não saibam em qual Ouvidoria elas podem reclamar. Eu estou atacando ele agora”. Essa mensagem chega para o policial e é lógico que o policial vai achar que é isso mesmo, que ele tem que continuar matando, continuar violentando, continuar tratando as pessoas como a polícia tem tratado. É mais um passo, é mais um ato truculento do secretário de Segurança Pública que tem dificuldade com o ambiente democrático. Ele tem dificuldade de ser contestado, de entender que, quando se é gestor público, se está submetido ao crivo popular, à aprovação ou não da população e da opinião pública em relação ao trabalho que se está fazendo. Então, eu classifico isso como um ato arbitrário que tem pouquíssima validade jurídica, porque uma resolução está abaixo de uma portaria, que está abaixo de um decreto, que está abaixo de uma lei. A nossa Ouvidoria foi criada por lei. Nós sim somos a Ouvidoria do Sistema de Segurança Pública. A lei é muito clara em relação a isso.

O governo afirma que a nova Ouvidoria da Segurança não terá as mesmas atribuições que a Ouvidoria das Polícias. Considera que haverá sobreposição no trabalho desses órgãos?

Um monte de coisa que ele coloca naquela resolução está sobrepondo o trabalho da Ouvidoria. Fazer pesquisa é trabalho da Ouvidoria, buscar informações é trabalho da Ouvidoria, sistematizar e analisar documentações é trabalho da Ouvidoria. Não existe isso de que essa Ouvidoria está limitada a receber denúncias e reclamações da atuação da polícia e das violações cometidas pela polícia. Não. A gente também recebe elogio. Está na lei que a gente recebe elogio. A gente também recebe reclamação dos próprios policiais. Tem um monte de casos de policiais aqui. O que ele está fazendo é cometer mais um arbítrio contra a sociedade, contra a Ouvidoria da Polícia, mas também contra os policiais, porque os policiais, quando precisam, recorrem a nós também. Veja o caso da soldado Carolina, que foi discriminada dentro de um batalhão. A Ouvidoria precisou entrar no caso pra ela não responder como se tivesse sido a autora do crime. A gente está aqui também em defesa da polícia, da boa polícia, da polícia ordeira, da polícia cidadã, que respeita as pessoas. Nós estamos abismados com o nível de truculência e arbitrariedade que o secretário cada vez mais demonstra atuar. Ele está cada dia mais truculento, cada dia mais arbitrário. Todos os dias ele avança.

O secretário de Segurança pode adiar indefinidamente a nomeação do Conselho da Ouvidoria?

Ele não pode, ele não pode. Ele vai responder a uma ação de improbidade administrativa por isso. No dia 17 de março, venceria o mandato do conselho antigo. No dia 14 de março de 2023, eu mandei um ofício solicitando a nomeação do novo conselho para a Secretaria de Segurança Pública. E o secretário de Segurança Pública não aceitou nomear o novo conselho, porque tem uma pessoa no conselho que ele não gosta. A lei é clara. A lei diz que o Ouvidor escolhe o conselho, faz o despacho e pede ao secretário para fazer a publicação, determinar que seja publicado no Diário Oficial. É um ato meramente formal. O secretário não opina no conselho, não tem ingerência sobre o conselho, assim como ele não opina e nem tem gerência na Ouvidoria.

O governador parece ter recuado sobre a implementação das câmeras corporais. Vocês acreditam que o Governo de São Paulo vai implementar essa política adequadamente?

O governador disse que estava errado no que diz respeito às câmeras. A gente sabia que ele estava errado, falamos isso para ele lá trás. Eu avalio que a postura do governador em falar publicamente sobre um equívoco cometido por ele é positiva, demonstra grandeza. Agora, é lógico que a gente sabe que o governador é um ser político. E, na conjuntura que a gente está vivendo, nessa situação de pressão, um ser político dá resposta. A gente precisa mais do que palavras do governador, agora a gente precisa de atos. Então, a gente recebe com muita positividade essa posição do governador, mas agora a nossa ansiedade é pelos atos que ele vai desencadear a partir dessa decisão dele de valorizar as câmeras, de valorizar o programa Olho Vivo, no sentido de refortalecer esse programa que foi sucateado pela gestão do Derrite. Para além de falar, a gente quer presenciar os atos e quer que essa política efetivamente ocorra.

Como avalia a articulação dos órgãos de controle, especialmente o Ministério Público, na fiscalização do trabalho das polícias?

A gente tinha uma relação muito positiva com o MP até a gestão do procurador Mário Sarrubbo. Após a mudança da gestão do MP, houve um distanciamento em relação a nós. O Ministério Público tem estado um tanto ausente no último período no que diz respeito aos debates que a gente tem feito. Inclusive, tem se furtado a exercer o seu trabalho. Eu espero que a partir desse novo momento, esse postura mude. Vou te dar um exemplo. O regime disciplinar da Polícia Militar define que o policial na ativa não pode fazer manifestação política. O Corregedor da PM fez uma postagem política numa rede social. Isso virou matéria jornalística e a, partir da matéria, nós pedimos para o comandante-geral abrir uma apuração e determinar a punição adequada. Também pedimos ao Gaesp que fizesse o acompanhamento dessa apuração, tomando providências caso verificasse que a polícia não cumpriu seu papel institucional. O Gaesp devolveu esse documento indeferindo o nosso pedido e dizendo que tratava-se de um ato pessoal do corregedor e, por isso, o Gaesp não poderia atuar. Mas veja só, nós temos 63 coronéis na estrutura da Polícia Militar do Estado de São Paulo, em universo de 78 mil homens e mulheres. O corregedor está no mais alto cargo da carreira dele. Ele tem ou não influência sobre essa tropa? Ele é o terceiro homem na cadeia de comando da polícia.

COM A PALAVRA, A SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SÃO PAULO

A Secretaria da Segurança Pública reitera seu compromisso com a legalidade, transparência e respeito aos direitos humanos fundamentais. Deste modo, não compactua com excessos ou desvios de conduta. Todas as denúncias encaminhadas pela Ouvidoria da Polícia são rigorosamente apuradas pelas corregedorias das instituições, que atuam de forma estruturada e independente para garantir que nenhuma irregularidade fique impune e aplicando as devidas punições aos agentes. Desde o início do ano passado, mais de 280 policiais foram demitidos e expulsos, enquanto um total de 414 agentes foram presos, mostrando o compromisso da SSP em não compactuar com os profissionais que violam as regras das suas respectivas instituições, cuja função primordial é a de proteger e zelar pela segurança da população.

Letalidade policial

Nos dois primeiros anos da atual gestão (2023 e 2024) houve redução de 32,2% nas mortes em decorrência de intervenção policial, se comparado aos dois primeiros anos da gestão anterior (2019 e 2020). Por determinação da Secretaria de Segurança Pública, todos os casos desta natureza são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, Ministério Público e Poder Judiciário. Os cursos ao efetivo são constantemente atualizados e comissões direcionadas à análise dos procedimentos revisam e aprimoram os treinamentos, bem como as estruturas investigativas, visando à redução da letalidade policial.

Estadão Conteúdo

Adicionar aos favoritos o Link permanente.