Eleições municipais brasileiras ao fundo gospel

Imagem: (Ricardo Stuckert / Presidência da República)

A evidência eleitoral é incontestável. A cada quatro anos, os brasileiros renovam suas 5.569 autoridades locais. Neste ano, foram convidados a exercer seu dever como cidadãos no dia 6 de outubro e, para aqueles que moram em uma cidade com mais de 200.000 eleitores, no dia 27 também. Em 2024, como em 2020, votaram sobretudo na direita e na extrema direita. Cinco partidos figuraram como os maiores vencedores. O MDB (Movimento Democrático Brasileiro), o PP (Partido Progressista), o PSD (Partido Social-Democrata), o PL (Partido Liberal), o União Brasil, que são todos, a despeito das denominações enganosas, representativos das famílias ideológicas liberais e conservadoras. O PT (Partido dos Trabalhadores) do presidente Lula, mordiscou um pouco aqui e ali no interior do país. Perdeu uma das importantes e raras cidades que detinha, Araraquara, no Estado de São Paulo. Não conquistou nenhuma das 26 capitais, ainda que tenha ajudado a eleger alguns prefeitos, ao apoiar alguns candidatos de direita que saíram vencedores, como Eduardo Paes, no Rio de Janeiro. Por outro lado, desde o primeiro turno, os candidatos bolsonaristas ganharam em Maceió, capital de Alagoas, e Rio Branco, no Acre. Este bom resultado dos candidatos apoiados pelo ex-presidente de extrema direita é um dado a se levar em conta a dois anos das próximas eleições presidenciais.

O reconhecimento do gênero Gospel como música popular brasileira dá também o tom deste surpreendente mês de outubro. Em 15 de outubro, nove dias após o primeiro turno das eleições municipais e a 12 dias do segundo, Lula recebeu no Palácio do Planalto, em Brasília, pastores e outros membros de igrejas evangélicas. Ele tinha, de fato, uma grande novidade para compartilhar com eles. Tinha acabado de assinar o projeto de lei 3090/2023, apresentado pelo deputado do PSD, Raimundo Santos, que se tornou a lei de nº 14.998. A adoção dessa lei decreta o dia 9 de junho como “Dia nacional da música gospel”. Segundo as declarações do chefe de Estado e do relator, o senador liberal Marcos Rogério [1], esta decisão “reconhece a contribuição do gospel à identidade musical do país e seu papel no bem-estar emocional e espiritual daqueles que o ouvem”.

Ele presta homenagem a uma missionária sueca, Frida Maria Strandberg Vingren, que, com essa música importada dos Estados Unidos, veio trazer as boas novas aos habitantes de Belém do Pará. Ela fundou, juntamente com um homem chamado Daniel Berg, uma das religiões evangélicas locais, a Assembleia de Deus. Os presentes cantaram em coro, em um dos salões da presidência, diante do chefe de Estado, a canção Faz um Milagre em mim. Seu autor, João Geraldo Danese Silveira (Regis Danese no encarte dos CDs), ex-católico e cantor de samba e de pagode, mudou de nome artístico em 2000, após dissabores conjugais. Abandonando a música popular brasileira, ele entrou no evangelismo e no gospel. Não muito longe, de 2003 a 2008, Gilberto Gil foi nomeado ministro da Cultura. Outros tempos, outras convicções culturais e talvez políticas.

Os dias 6 e 15 de outubro não têm, aparentemente, nada em comum. O dia 6 de outubro se tratava de um voto, vencido, para além das circunstâncias, pelas forças filosoficamente de direita. O dia 15 de outubro foi um dia de “santificação” oficial de uma música religiosa norte-americana. Essas duas datas, que parecem não ter relação, refletem, no entanto, um cruzamento das orações e das cédulas de votação. O Brasil de 2024 não é mais aquele de 2003. Ele está, como outros países latino-americanos, no centro de uma batalha dos espíritos e dos corações. A esquerda brasileira ganhou as eleições presidenciais de 2022 graças a um “salvador” providencial: Lula. A ausência de Lula, por qualquer que fosse a razão seria o anúncio de um futuro incerto.

Lula, como bom sindicalista, sentiu as evoluções em curso. Seu povo vai do catolicismo ao evangelismo. Este evangelismo de livre-mercado religioso é portador de mensagens de conteúdo individualista e moralizante. Todos os dias, dezenas e dezenas de pastores falam e cantam esse catecismo individualista nos bairros populares. A esquerda, o PT, perdeu o fio e o contato com seus eleitores de 2003. Eles não estão mais nas ruas e nos mercados como há vinte anos. Mais frequentemente se limitam a difundir imagens e slogans via Whatsapp ou redes sociais. Por falta de alternativa, Lula vai aonde seu povo está, nos templos evangélicos.

Uma enxurrada de leis sancionando uma espécie de rendição ideológica foi adotada como abordagem nessas eleições municipais: lei sobre a festa nacional do gospel, mas também a criação de um dia do pastor e da pastora evangélicos no segundo domingo de junho. Lula trata às vezes os pastores como candidatos porque, como disse um sindicalista ao correspondente do Le Monde [2]: “os pobres se dirigem muito mais ao pastor que ao líder sindical”.

Esta estratégia pode permitir à esquerda brasileira botar a casa em ordem? A curto prazo, esses gestos legislativos e de manobras eleitorais podem facilitar alguns acordos como aqueles que se pode negociar entre patrões e sindicalistas, entre partidos e grupos políticos. Mas, a longo prazo, a mobilização de Lula em relação a valores tão distantes daqueles do progressismo impõe questionamentos sobre a pertinência desse tipo de negociação. Não estaria ele sancionando um fracasso, aquele de não mais saber falar aos pobres, de admitir que a batalha ideológica foi vencida pela direita, com e graças aos evangélicos?  “O pentecostalismo”, explicou em um livro o sociólogo Vitor Araujo, “é enraizado nos bairros pobres. A religião ensinou a essas pessoas que a economia é menos importante que a moral”.

No dia 15 de outubro, amigos de Bolsonaro, como o deputado Otoni de Paula, foram ao Planalto festejar a oficialização brasileira do gospel. Em 2010, segundo a estatística oficial, os evangélicos contabilizavam 22%, número que subiu para 31% em 2020. Eles devem ser maioria em 2030. Eleitoralmente, viu-se, em 6 de outubro, a direita, cujos valores lhe são próximos, avançar. A maioria dos pastores e, consequentemente, dos crentes continua crítica, até mesmo hostil a Lula, ao PT e, de maneira geral, à esquerda.

Texto publicado originalmente em francês em 23 de outubro de 2024 no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original: “Brésil et les municipales sur fond de gospel”. Disponível em: https://www.espaces-latinos.org/archives/123042. Tradução de Simone G. Varella e Luzmara Curcino.

Notas

[1] Informação da Agência do Senado em 16/10/2024, 10h13, e comunicado do Planalto em 05/10/2024, 15h29.

[2] Bruno Meyerfeld, em “Le Monde”, 5 de outubro de 2024, p. 5.

Jean-Jacques Kourliandsky é Diretor do “Observatório da América Latina” junto à Fundação Jean Jaurès, na França, especialista em análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014). Colabora frequentemente com o “Observatório da Imprensa”, no Brasil, em parceria com o Laboratório de Estudos do Discurso (LABOR) e com o Laboratório de Estudos da Leitura (LIRE), ambos com sede na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

 

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