Sistema Municipal de Cultura 4: Quando a cidade atende ao chamado da cultura

Mestre Biriba – Jefferson Dias

Éder Rodrigues dos Santos

Em tempos de Conferências Livres da Cultura realizadas nas últimas semanas em Boa Vista, o diálogo entre o poder público, a sociedade civil organizada e o legislativo torna-se, ao mesmo tempo, desafio e necessidade para a consolidação do Sistema Municipal de Cultura em Boa Vista (RR). Em uma terra de pluralidades — na qual o canto indígena ecoa com a batida do tambor afrodescendente e o repente roraimense cruza com as rimas do nordeste, do canto llanero caribenho e das batalhas de MCs, torna-se urgente construir políticas culturais que reflitam essa diversidade. Transformar a escuta pública em política cultural requer mais do que boas intenções: exige compromisso institucional, articulação democrática e vontade política.

Implantar o Sistema Municipal de Cultura significa garantir estrutura e permanência às políticas culturais, por meio de cinco pilares definidos pela legislação federal: órgão gestor de cultura, Conselho Municipal de Cultura com paridade, Plano Municipal de Cultura, Fundo Municipal de Cultura e Conferências Municipais. Apesar da clareza da lei, o grande obstáculo é a prática: como fazer esses instrumentos saírem do papel em um contexto de disputas políticas, baixa prioridade orçamentária e resistência das elites políticas e econômicas ao controle social?

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Em Boa Vista, o cenário atual é de mobilização. Segundo dados do Mapa Cultural de Roraima (2023), existem mais de 700 agentes culturais cadastrados, representando segmentos como capoeira (com mais de 40 grupos ativos), culturas afro-religiosas (23 terreiros identificados), cultura popular e tradição oral (cerca de 120 manifestações), povos indígenas (com 11 etnias com produção cultural contínua), além de expressões e segmentos como audiovisual, literatura, dança, teatro, dança, música Hip Hop, diversidade LGBTQIA+, economia criativa, gastronomia, gospel e o patrimônio material e imaterial, dentre outros, ainda pouco mapeados. Esses números revelam a potência criativa da capital, mas também a carência de estrutura e políticas permanentes para sua valorização.

O papel do poder público municipal é estratégico: ele deve promover o diálogo contínuo com a sociedade civil, articular a criação das leis que instituem o sistema, garantir orçamento próprio para a cultura nas peças orçamentárias anuais e promover o consumo descentralizado de cultura. Sem orçamento, não há execução. Sem escuta, não há legitimidade. Sem descentralizar geograficamente o consumo, não há inclusão. Por sua vez, o legislativo municipal tem a função constitucional de debater, emendar e aprovar as propostas oriundas do executivo e da sociedade, sendo essencial que vereadores compreendam a cultura não como gasto, mas como investimento no desenvolvimento humano, econômico e social.

Representada por coletivos, artistas, mestres da tradição, produtores culturais e conselheiros, a sociedade civil precisa ocupar com firmeza, organização e disciplina os espaços de participação. É a partir desse chão que emergem os projetos que falam da alma da cidade, da resistência dos territórios, da ancestralidade e da inovação. É a partir dessa base viva que se constrói um conselho legítimo, que garanta representação de todos os segmentos, sem exclusões ou hierarquias culturais.

A experiência de outros estados pode servir de espelho e inspiração. O estado do Pará, por exemplo, implantou sistemas municipais em 45% dos seus municípios, com forte articulação entre o executivo estadual, prefeituras e sociedade civil. O Amazonas, em Manaus, instituiu o sistema com apoio de uma frente parlamentar da cultura, garantindo orçamento anual fixo e criação de editais próprios. Já Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo foram pioneiros ao promoverem conferências regionais e estaduais integradas, que resultaram em legislações municipais mais robustas e inclusivas.

A criação da legislação que institui o Sistema Municipal de Cultura deve, acima de tudo, ser fruto de um processo participativo, em consonância com os princípios estabelecidos pelo Sistema Nacional de Cultura. Não se trata de um decreto de cima para baixo, mas de uma construção horizontal, na qual o poder público não deve impor, mas propor; não domina, mas compartilha. A lei precisa nascer do diálogo real entre gestores (as) e fazedores (as) de cultura, em audiências públicas, fóruns, grupos de trabalho e consultas comunitárias. O papel do poder público é garantir os meios, os espaços e os recursos para que essa escuta aconteça — e, sobretudo, respeitar o que dela emerge. Uma legislação legítima é aquela que reflete a alma da cidade e se alinha às diretrizes federais, sem ignorar os saberes locais que muitas vezes não cabem nos formulários, mas ecoam nos terreiros, nas aldeias, nos palcos, nas telas, nos muros e nas praças.

Na cidade do Rio de Janeiro, a construção do sistema foi impulsionada por um censo cultural comunitário, que levantou mais de seis mil iniciativas culturais nos territórios periféricos. Em Salvador (BA), o diálogo entre as comunidades de matriz africana, capoeiristas e o poder público foi fundamental para garantir assentos específicos no Conselho de Cultura, respeitando a diversidade étnica e religiosa. Em São Paulo, a força dos coletivos de cultura urbana pressionou o executivo e garantiu a criação de câmaras setoriais e orçamento participativo para o Fundo Municipal, abrangendo diversos territórios.

Esses exemplos demonstram que o êxito do Sistema Municipal de Cultura não está apenas na assinatura de uma lei, mas na construção coletiva de um pacto cultural e ético. Um pacto que respeite a pluralidade dos saberes e fazeres, que reconheça que cultura é educação, é saúde, é economia, é pertencimento. E que, portanto, precisa ser tratada com a seriedade de uma política de Estado, não como agenda pontual.

O poder público das cidades do estado de Roraima precisa abrir seus ouvidos para suas comunidades e seus olhos para o país. O que está em jogo não é apenas a formalização de um sistema, mas a definição de que tipo de cidade queremos ser: uma cidade que silencia suas raízes ou uma cidade que as cultiva? Uma cidade que terceiriza sua cultura a eventos esporádicos, limitando o consumo, ou uma cidade que investe em sua memória, seus mestres, seus jovens criadores?

A cultura pulsa nas veias de Boa Vista — nas rodas de capoeira, nas danças e grafismos indígenas, nos versos dos poetas, nas batidas do rap, nos saberes ancestrais, no artesanato, na culinária regional, na percepção visual dos cineastas, na performance teatral, enfim, no corpo da juventude. Está na hora do poder público, a sociedade civil e o legislativo se unirem com coragem para fazer essa pulsação se tornar política. Que o diálogo, mesmo difícil, floresça como compromisso. E que o Sistema Municipal de Cultura seja mais que uma promessa: seja realidade viva.

Como nos ensinou Mestre Pastinha, guardião da capoeira Angola e da filosofia ancestral que une corpo, espírito e comunidade: “Capoeira é tudo que a boca come”. Com essas palavras, ele traduzia a capoeira como expressão completa da vida e da cultura do povo. Sua luta, não apenas pela arte da capoeira, mas por seu reconhecimento como saber popular, nos inspira a compreender que cultura não se impõe — se vive, se compartilha e se constrói coletivamente. Que o legado de Mestre Pastinha, defensor da dignidade do capoeirista e da oralidade como fonte legítima de saber, sirva de guia para Boa Vista. Que sua voz, ainda ressoando nos becos de Salvador (BA) e nas rodas do mundo, seja lembrada como um chamado à escuta, ao respeito e à construção de políticas culturais verdadeiramente democráticas.

Jefferson Dias – (Mestre Biriba), é mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN; Especialista em Filosofia da Religião (UERR), Pós-graduado em docência do nível Superior e Bacharel em Direito e Pós-graduando em Compliance, Governança Corporativa e ESG. Conselheiro Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Estado de Roraima – CONSEPIRR, Membro do grupo de Estudo e Pesquisas em Africanidades e Minorias Sociais (UFRR), membro do Comitê Gestor da salvaguarda da Capoeira de Roraima e do Comitê Pró-Cultura Roraima, Membro da Federação Roraimense de Capoeira – FERRCAP, Mestre de Capoeira pelo Grupo Senzala e Fundador do projeto social Instituto Biriba – Educar para transformar. Foi professor de Direito Penal, Ética, Bioética e Legislação Trabalhista na instituição Ser Educacional. Articulista de jornal local, autor de obras autorais como livros, Cds, shows, documentários e outros. Atua nas seguintes áreas: Direitos Culturais, Direito Autoral, Patrimônio Cultural, Políticas Culturais, Economia Criativa, Liberdade Religiosa e Cultura Popular.

Éder Santos é Doutor e Mestre em Geografia Cultural, jornalista, sociólogo, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Modos de Vidas e Culturas Amazônicas da Universidade Federal de Rondônia; membro associado da Mostra Internacional do Cinema Negro (SP); do Comitê Pró-Cultura Roraima. É presidente da Associação Roraimense de Cinema e Produção Audiovisual Independente (Arcine).

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