O voto do ministro Alexandre de Moraes, nesta semana, ao rejeitar parte da denúncia apresentada pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet, contra dois militares do chamado “núcleo 3” da trama golpista foge ao padrão que se consolidou desde o final de 2023, quando Gonet assumiu o comando do Ministério Público Federal. Levantamento feito pelo Estadão mostra que, em cerca de 85% dos casos, Moraes acolheu integralmente os posicionamentos da PGR em processos relacionados aos atos de 8 de Janeiro e à ação penal que julga o ex-presidente Jair Bolsonaro por tentativa de golpe de Estado — todos sob sua relatoria no Supremo.
O cenário contrasta com o momento vivido na gestão anterior de Augusto Aras, marcada por divergências e críticas à postura do então procurador-geral. Nas mesmas frentes de investigação ligadas ao 8 de Janeiro, apenas 52,7% das manifestações da PGR sob Aras foram acolhidas por Moraes.
Ao todo, foram analisadas 211 manifestações de Aras nos inquéritos 4.921, 4.922, 4.923, relacionados aos atos de 8 de Janeiro. Além disso, 418 manifestações da Procuradoria-Geral da República nestes casos mas também na Pet 12.100 e em ações penais que se originaram dela e dos inquéritos entre dezembro de 2023 e maio de 2025. Entre esses feitos estão denúncias e pareceres ligados a inquéritos sobre participantes, autores intelectuais e financiadores dos atos golpistas, investigações sobre a tentativa de golpe e ações penais emblemáticas, como as que envolvem Bolsonaro e a cabeleireira Débora dos Santos Rodrigues.
Das 418 manifestações da PGR sob Gonet, 85,6% foram integralmente acolhidas por Moraes, enquanto em 14,4% das vezes o ministro discordou total ou parcialmente das posições da PGR. Para especialistas ouvidos pelo Estadão, o índice é expressivo. Embora a Procuradoria tenha um papel central nas investigações e na acusação, o relator não é obrigado a seguir seus pareceres, podendo acolher, rejeitar ou modular os pedidos com base em sua leitura dos autos.
Cabe à PGR conduzir a acusação penal no STF, propor denúncias e se manifestar ao longo da tramitação dos processos. Entre as manifestações consideradas estão pedidos de prisão preventiva, como no caso de Braga Netto; pareceres sobre liberdade provisória, como na soltura de Mauro Cid; requerimentos de medidas cautelares, como o uso de tornozeleira eletrônica; e solicitações para conversão de pena em prisão domiciliar. Já ao relator cabe conduzir o processo e decidir sobre cada uma dessas demandas.
A apresentação da denúncia contra Jair Bolsonaro, em fevereiro de 2025, um dos marcos mais simbólicos dessa sintonia institucional. Assinada por Gonet, a peça acusa o ex-presidente e outros sete aliados de integrar o “núcleo crucial” da tentativa de golpe de Estado em 2022. A Primeira Turma do STF aceitou a denúncia por unanimidade, e Bolsonaro passou a responder como réu por cinco crimes. Desde que assumiu, Gonet não se concentrou apenas em Bolsonaro e seu entorno: mais da metade das 418 manifestações analisadas dizem respeito a denúncias contra réus do 8 de Janeiro.
A sincronia entre ambos também serviu, em alguns momentos, para distensionar o ambiente político. Na mesma semana em que a Primeira Turma do STF tornou Bolsonaro réu por tentativa de golpe, Gonet defendeu a substituição da prisão em regime fechado por domiciliar no caso da cabeleireira Débora dos Santos Rodrigues, que ficou conhecida por pichar a estátua da Justiça com batom durante os atos de 8 de Janeiro. Moraes acatou o pedido, permitindo que ela aguardasse o julgamento em casa.
O procurador-geral também solicitou medidas semelhantes para outros réus de menor protagonismo, em decisões acompanhadas por Moraes e tomadas em meio a críticas às penas aplicadas, que abriram caminho para a articulação do PL da Anistia na Câmara.
Indicado por Lula no fim de 2023, Gonet foi apresentado como um nome de perfil técnico, com trânsito entre diferentes alas do Judiciário. Próximo do ministro Gilmar Mendes, com quem foi sócio no Instituto de Direito Público (IDP) até 2017, Gonet manteve interlocução com Moraes durante o período eleitoral de 2022. À época vice-procurador-geral Eleitoral, assinou o parecer que defendeu a condenação de Bolsonaro por abuso de poder no TSE.
Apesar da interlocução, a professora da ESPM-SP Ana Laura Barbosa avalia que a sintonia e a alta taxa de concordância entre Gonet e Moraes estão mais ligadas ao perfil técnico e ao histórico profissional do ministro do que a uma afinidade institucional. Moraes atuou por mais de uma década como promotor de Justiça em São Paulo, o que ajuda a explicar sua postura mais firme em temas criminais. Esse histórico, diz ela, favorece naturalmente decisões que se alinham à posição da PGR, sem que isso represente endosso automático às teses jurídicas do órgão.
O criminalista Renato Vieira concorda que a experiência no Ministério Público ajuda a explicar parte da sintonia, mas pondera que isso não é suficiente para justificar o elevado grau de convergência. Ele lembra que outros ministros egressos do MP, como Sepúlveda Pertence e Celso de Mello, adotaram posturas mais independentes em relação à PGR. “Não é saudável esse alinhamento. É um mau exemplo. O que essas estatísticas mostram é uma convergência alta demais, e isso não é bom”, afirma.
Vieira também critica o fato de que esse alinhamento, mesmo diante da gravidade dos crimes, contribui para desequilíbrios estruturais no processo penal brasileiro. Em sua visão, o acúmulo de funções da PGR como órgão acusador e fiscal da lei dá peso desproporcional às suas manifestações perante o Judiciário. “O Ministério Público acaba, em muitos casos, sendo mais respeitado que as defesas. Isso é um erro do sistema jurídico brasileiro”, afirma.
Embora a sintonia seja predominante até aqui, também houve casos em que Moraes divergiu dos posicionamentos de Gonet. Em fevereiro de 2024, por exemplo, a Procuradoria-Geral da República se manifestou contra a proibição imposta ao presidente do PL, Valdemar Costa Neto, de manter contato com outros investigados e de viajar para fora do país, no âmbito da investigação sobre a tentativa de golpe de Estado. Ainda assim, Moraes manteve as medidas, contrariando o parecer.
Nesta semana, uma nova divergência marcou o julgamento da Primeira Turma do STF sobre a denúncia apresentada pela PGR contra 12 acusados de integrar o chamado “núcleo três” da tentativa de golpe. Moraes votou pelo acolhimento parcial da denúncia e excluiu dois militares: o coronel da reserva Cleverson Magalhães e o general da ativa Nilton Diniz Rodrigues, por falta de elementos. Os demais ministros acompanharam o relator. Foi a primeira vez que Moraes poupou parte dos denunciados em ações penais relacionadas ao 8 de Janeiro.
Aras é exceção à regra
Durante a gestão de Augusto Aras, a dinâmica era oposta. Moraes frequentemente ignorava pareceres da PGR, dava protagonismo à Polícia Federal e, em diversas ocasiões, tomava decisões de ofício, sem consultar a Procuradoria, inclusive em momentos centrais de investigações contra Bolsonaro e os atos de 8 de Janeiro.
Indicado por Bolsonaro, Aras comandou a PGR entre 2019 e setembro de 2023, sendo alvo de críticas recorrentes por omissão, inclusive de ministros do próprio Supremo.
Embora tenha deixado o cargo antes do avanço das denúncias formais, Aras participou de parte dos processos incluídos no levantamento, com destaque para os inquéritos sobre os atos antidemocráticos. Nessas investigações, foram identificadas 211 manifestações da PGR sob sua gestão, das quais apenas 52,7% foram acolhidas por Moraes. O dado revela um padrão de menor sintonia entre os dois.
Um dos episódios que ilustram essa discordância ocorreu em 2021, após Moraes autorizar a abertura do primeiro inquérito contra Bolsonaro com base na CPI da Covid. Na ocasião, o ministro fez críticas públicas a Aras, que havia optado apenas por uma investigação preliminar. A PGR pediu o arquivamento sob o argumento de que os fatos já estavam sendo apurados internamente, mas Moraes negou o pedido — atitude incomum diante da jurisprudência do STF de seguir os pareceres da Procuradoria nestes tipos de casos.
Já em 2022, Moraes voltou a contrariar o órgão ao negar outro pedido de arquivamento, desta vez relacionado ao inquérito que investiga o suposto vazamento de dados sigilosos de uma apuração da Polícia Federal ainda não finalizada.
Para Ana Laura Barbosa, a atuação de Aras destoou do padrão histórico da PGR, que é de mais convergência com os relatores. “O que pode ter ocorrido é que a gestão Aras foi uma exceção à regra”, diz.
Renato Vieira concorda e avalia que Moraes agiu corretamente diante do que classifica como comportamento omisso de Aras nas investigações. O criminalista aponta, inclusive, que foi a postura passiva do então procurador-geral que levou Moraes a assumir um papel de protagonismo dentro do Supremo.
“Foi nesse período que ele foi ungido pelos próprios ministros do Supremo para ser o defensor da instituição, pelo fato de que o PGR não fazia nada diante dos ataques aos ministros.”
Agora, diante do protagonismo que exerce nos casos mais sensíveis do Supremo, Vieira avalia que há aspectos da atuação de Moraes que merecem crítica, especialmente quando adota uma postura semelhante à do Ministério Público. Como exemplo, cita a condução da delação premiada de Mauro Cid, na qual, segundo ele, Moraes foi muito além da postura de um juiz. Para o criminalista, esse tipo de condução enfraquece os limites entre acusação e julgamento. “Quando o juiz atua como se fosse parte, o sistema perde credibilidade”, afirma.
Estadão Conteúdo