JOÃO GABRIEL DE LIMA
LISBOA, None (FOLHAPRESS)
A data nacional portuguesa é o 25 de abril. Nesse dia, em 1974, um golpe militar derrubou a ditadura salazarista no episódio conhecido como Revolução dos Cravos. Os dois 25 de abril que se seguiram, no entanto, marcaram igualmente a história portuguesa. Em 25 de abril de 1975 os portugueses foram às urnas, pela primeira vez depois de quase cinco décadas de autoritarismo, para eleger uma Assembleia Constituinte. Em 25 de abril de 1976, uma nova eleição definiu a composição do primeiro Parlamento da era democrática.
A façanha de organizar um pleito num país recém-saído de uma longa treva autoritária é o tema da exposição “Haverá Eleições”, inaugurada nesta semana na Fundação Calouste Gulbenkian de Lisboa.
“Nós nunca tínhamos tido eleições verdadeiramente livres em Portugal. As que haviam ocorrido na Primeira República, no início do século 20, tinham grandes limitações ao sufrágio, a começar pelas mulheres, que não puderam votar durante muito tempo”, diz o cientista político Pedro Magalhães, da Universidade de Lisboa, um dos curadores da exposição, ao lado da cineasta e designer Catarina Vasconcelos. “A epopeia da preparação da eleição nos pareceu tão apaixonante quanto a própria eleição.”
O recenseamento eleitoral foi feito às pressas, com a ajuda de voluntários. O papel para as cédulas em que o eleitor marcava um x em seu partido favorito -usadas pela primeira vez no país- foi doado pelo governo sueco. Houve um mutirão para confeccionar urnas e cabines de votação. O recenseamento identificou 6,2 milhões de adultos aptos a votar, numa população de cerca de 9 milhões de pessoas. Destes, 92% foram efetivamente às urnas, num recorde de comparecimento eleitoral que nunca mais seria superado.
Portugal comemora o cinquentenário de sua primeira eleição no mesmo ano em que o Brasil celebra os 40 anos da redemocratização -e há paralelos entre os dois processos. A começar pelo entusiasmo. As multidões nas ruas de Lisboa no dia da votação lembram a campanha brasileira das Diretas Já -que acabou frustrada quando o Congresso Nacional derrubou a emenda Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições (a votação, coincidentemente, foi num 25 de abril, em 1984).
Outra semelhança foi a adesão da sociedade civil e dos meios de comunicação. No Brasil, estudantes de direito e associações profissionais de advogados e jornalistas iniciaram o movimento pelo restabelecimento de eleições presidenciais, e esta Folha de S.Paulo propagou o slogan “use amarelo pelas diretas”.
Do outro lado do Atlântico, a Rádio e Televisão Portuguesa, a RTP, teve importância semelhante.
“A televisão desempenhou um papel extraordinário, a apelar ao voto, a explicar o que é Constituinte, a tirar dúvidas dos eleitores”, afirma Pedro Magalhães. “Naquela altura, tínhamos 26% de analfabetismo, quem lia jornais era a população urbana instruída, para chegar a todo país só mesmo a televisão e o rádio.”
Uma das grandes atrações da exposição “Haverá eleições” é um documentário dirigido pela cineasta Cláudia Varejão com imagens cedidas, em sua maioria, pela RTP. A cobertura da emissora foi extensa e ambiciosa. Equipes de jornalistas e cinegrafistas percorreram o país de helicóptero durante a campanha eleitoral.
No documentário, eleitores de todos os perfis e classes sociais falam de suas escolhas eleitorais e mostram intensa emoção por votar pela primeira vez. “Nota-se um esforço de ser imparcial, de divulgar os procedimentos e as regras, de ser didático, sem agenda política, isso é muito interessante e eu não tenho uma explicação fácil para isso”, diz Magalhães. “Ouvi que alguns dos principais jornalistas da RTP haviam estagiado na BBC britânica, e tinham essa experiência de televisão pública num regime democrático.”
Outra parte da exposição é dedicada ao contexto político da época. A Revolução dos Cravos portuguesa foi consagrada nos manuais de ciência política como o marco inicial da “Terceira onda de democratização”. Como peças de dominó, caíram em sequência o regime franquista na Espanha, as ditaduras de quartelada da América Latina -incluindo a brasileira- e os autoritarismos comunistas.
A derrubada do salazarismo, no entanto, não significava necessariamente o início de um processo de redemocratização. A Guerra Fria estava em curso, e a possibilidade de Portugal se tornar um satélite da então União Soviética foi colocada na mesa.
“Portugal viveu um momento de turismo revolucionário”, diz o cientista político António Costa Pinto, também da Universidade de Lisboa. “Maoistas franceses e comunistas italianos visitavam o país para ver o que parecia o embrião de uma revolução socialista.”
O semanário americano Newsweek descreveu, numa reportagem de capa, a gênese de um suposto Portugal soviético. O Partido Comunista Português e alguns dos militares de esquerda que haviam dado o golpe em 1974 defendiam o aprofundamento do “processo revolucionário em curso” e eram contra a realização de eleições. No dia 11 de março de 1975, a extrema direita tentou um contragolpe, e o pleito de 25 de abril -que estava previsto no manifesto inicial da Revolução dos Cravos- ficou ainda mais ameaçado.
A promessa de ir às urnas, no entanto, foi mantida pelos militares de esquerda que haviam feito a Revolução dos Cravos. “Mesmo os que mais desprezavam as eleições como uma cerimônia da ‘democracia burguesa’ não conseguiram fugir a essa promessa, porque tornou-se uma questão de honra militar”, diz o curador Pedro Magalhães. O pleito, assim, foi encarado quase como uma operação de guerra -ganhando a adesão apaixonada da sociedade civil. A Fundação Calouste Gulbenkian, onde se realiza a “Haverá eleições”, ofereceu sua sede para centralizar a apuração, e assumiu os custos da operação.
O resultado mostrou que, entre revolução comunista e democracia, os portugueses preferiam a segunda. A vitória coube ao moderado Partido Socialista, que havia sido fundado por portugueses no exílio e tinha fortes laços com os sociais-democratas da França e da Alemanha. No norte do país, tradicionalmente mais conservador, o campeão de votos foi o Partido Popular Democrático, de centro-direita.
O Partido Comunista Português, forte nas manifestações de rua, teve apenas 12% dos votos. A eleição histórica de 1975 corrigiu o rumo da Revolução dos Cravos na direção da União Europeia.
Em 1986, o maior clube de democracias do mundo aceitaria Portugal como sócio.