
Neste mês de abril, Brasília celebra seus 65 anos, e com ela, também ganham destaque as regiões administrativas que ajudaram a moldar a identidade da capital federal. O plano original da cidade previa a criação de uma metrópole moderna, com um centro urbano – o Plano Piloto – e, à medida que sua população crescesse, cidades satélites seriam implantadas para acomodar esse desenvolvimento. A proposta era que esses núcleos urbanos fossem separados por cinturões verdes, protegendo áreas agrícolas e preservando uma zona de amortecimento ao redor da capital.
Mas o planejamento não foi seguido à risca. Segundo a professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília (FAU/UnB), Maria Fernanda Derntl, com o avanço das obras, trabalhadores e suas famílias passaram a ocupar, de forma irregular, áreas no entorno da cidade. Como resposta, o governo criou as primeiras cidades satélites – entre elas, Taguatinga, fundada em 1958, com o objetivo de realocar os operários para regiões mais distantes, mas com o mínimo de infraestrutura.
“O Núcleo Bandeirante, por exemplo, foi inicialmente pensado como uma ‘cidade livre’, um ponto de apoio para comércio e serviços voltados à construção de Brasília. A ideia era que esse núcleo fosse demolido após a inauguração da capital, mas acabou se consolidando como cidade satélite, devido ao crescimento espontâneo da população”, explica Maria Fernanda.
Algumas regiões, no entanto, têm origens ainda mais antigas do que Brasília. É o caso de Planaltina, cujas raízes remontam ao século XVIII, quando servia como ponto de apoio a viajantes e comerciantes que cruzavam a estrada ligando Salvador a Goiás e Cuiabá. “Antes mesmo da construção de Brasília, Planaltina já era um núcleo relevante para o transporte e comércio na região. Com a criação da nova capital, o território foi dividido entre o Distrito Federal e o estado de Goiás, dando origem à Planaltina do DF e à Planaltina de Goiás”, pontua a pesquisadora.
Durante os anos de construção da capital, as cidades satélites surgiram como resposta à ocupação desordenada nas bordas do Plano Piloto. Hoje, o Distrito Federal é composto por 35 regiões administrativas, entre as quais se destacam o Gama e a Ceilândia – territórios marcados por histórias próprias, personagens únicos e uma conexão profunda com a trajetória de Brasília, construída pela força de milhares de migrantes que ali encontraram um lugar para chamar de lar.

O Gama é uma das regiões administrativas mais antigas do DF, e sua origem remonta ao século XVIII, quando uma expedição liderada por Antônio Bueno da Silva, o Anhanguera, partiu de Paracatu (MG) em busca de riquezas no cerrado do Centro-Oeste. Durante o percurso, os bandeirantes chegaram à região onde hoje está Luziânia, conhecida pelo rio de águas avermelhadas e ricas em ouro. Um padre chamado Luiz da Gama celebrou uma missa no local, batizando a área como Santa Luzia.
Explorando ainda mais o território, os bandeirantes chegaram à região onde atualmente está o Gama, atraídos pela abundância de nascentes e vida silvestre. O processo, contudo, envolveu conflitos violentos com os indígenas caiapós, que habitavam a área e foram dizimados. Um dos episódios mais lembrados envolve um cemitério indígena no local onde hoje se encontra o Hospital Regional do Gama, memória preservada por antigos moradores e até mesmo por uma escola de samba local.

No século XX, o Gama voltou a ganhar importância, desta vez no contexto da construção da nova capital. Há relatos de que Juscelino Kubitschek teria pisado pela primeira vez no Centro-Oeste em terras gamenses, nas proximidades do atual Park Way. A antiga Fazenda Gama serviu de base para a divisão territorial que daria forma ao Distrito Federal, e a cidade tornou-se um dos principais pontos de acolhimento para os trabalhadores que ergueram Brasília.
“O Gama é um exemplo clássico de como o projeto modernista de Brasília gerou núcleos urbanos periféricos, destinados aos operários e trabalhadores que não podiam viver no Plano Piloto”, afirma Maria Fernanda.
Entre os moradores, essa identidade é vivida com orgulho. Clairton Passos Rodrigues, repórter fotográfico de 44 anos, vive no Gama há mais de três décadas e é um dos maiores entusiastas da cultura local. Criador da página “Nós que amamos o Gama”, com mais de 64 mil seguidores no Facebook, ele busca valorizar a história, a memória afetiva e o potencial cultural da cidade. “Minha relação com o Gama é de amor verdadeiro. Quero que as pessoas sintam orgulho de morar aqui”, declara.
Clairton evita assuntos políticos e policiais na página e prefere destacar histórias, personagens e curiosidades locais. Em uma de suas pesquisas, resgatou a lenda do cemitério indígena, entrevistando pioneiros e visitando museus da cidade. “O Gama tem muito a ver com a história de Brasília. Sua conexão com o Brasil vem desde os tempos coloniais e sempre teve papel importante no desenvolvimento da região”, explica.
A página também se tornou um espaço de engajamento comunitário. Com quadros como “Cidadão Gamense” e “Gama e suas Histórias”, Clairton destaca pessoas e lugares simbólicos. Ele se emociona ao relembrar um caso que marcou sua trajetória: “Uma mulher reencontrou o pai depois de 40 anos, graças à ajuda dos membros do grupo. Foi um momento muito especial”, conta.
Entre as dicas para quem quer conhecer melhor o Gama, Clairton destaca três lugares imperdíveis: a Capela São Francisco de Assis, um dos marcos históricos da cidade; o estádio Bezerrão, referência esportiva e cultural; e a Praça Lourival Bandeira, homenagem ao grande repentista gamense.
Como curiosidade, ele conta que a famosa frase “Quem ama mora no Gama” surgiu nos anos 1980 como contraponto à expressão “Moro na lama, mas não moro no Gama”, que reforçava o estigma da cidade. A frase positiva foi criada por uma equipe do empresário Paulo Octávio, então investidor na região, como estratégia para resgatar o orgulho dos moradores – e acabou virando símbolo de pertencimento até hoje.
Se o Gama preserva suas raízes históricas, a Ceilândia se destaca como símbolo de resistência e diversidade. Criada em 1971 para realocar moradores de ocupações irregulares no Plano Piloto, rapidamente se tornou a região administrativa mais populosa do DF. A presença marcante de migrantes nordestinos foi decisiva na construção da identidade local, transformando a cidade em um vibrante polo cultural.
Para Maria Fernanda, a criação da Ceilândia carrega as marcas de uma segregação espacial planejada. “Foi uma estratégia clara de afastar as classes populares do centro político e administrativo de Brasília”, ressalta. Ainda assim, a cidade cresceu com força própria, se tornando um polo cultural e econômico essencial para o DF.

Essa força é representada por jovens como Gu da Cei, artista visual, produtor cultural e ativista de 28 anos. Nascido em Ceilândia, filho de uma migrante maranhense, ele construiu sua trajetória artística inspirado pelas ruas da cidade. Desde seu primeiro documentário experimental, Da Quebrada (2017), Gu tem buscado dar visibilidade a artistas locais e às memórias afetivas da região.

“Minha relação com Ceilândia é de muito orgulho, de fazer parte”, afirma. Em seu trabalho, ele procura valorizar produções artísticas que muitas vezes são marginalizadas pelos grandes circuitos. Um de seus projetos mais simbólicos ocorreu no Museu Vivo da Memória Candanga, com intervenções artísticas que relembram a história da Vila do IAPI, um dos marcos na luta por moradia. “Ali, atrás do museu, nasceu a cidade mais populosa do DF. E o que fizeram com esse território? Transformaram em um setor de mansões, sem dar visibilidade à sua história”, critica.
A ideia de que Ceilândia sempre foi tratada como periferia marginalizada está no centro de suas criações. Em uma de suas intervenções, projetou em uma caixa d’água o lema “Terra dos Incansáveis” — uma homenagem aos moradores que resistiram às remoções e construíram, com esforço coletivo, uma cidade com identidade própria.