
A capital federal nasceu do traço visionário de Lúcio Costa e do concreto poético de Oscar Niemeyer. Juntos, desenharam, na imensidão do Planalto Central, uma cidade-monumento, onde cada curva e linha conta a história de um Brasil que ousou sonhar com o futuro. Prédios uniformes, ruas amplas e arborizadas, parques e setores pensados para o bem-estar da população e dos visitantes: essa é a essência de Brasília. “Diferente de outras capitais, que cresceram de forma orgânica, Brasília foi planejada desde o início para ser não apenas a sede do governo, mas também um monumento em si”, afirma a professora Cristiane Portela, do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora do projeto Outras Brasílias.
Ao Jornal de Brasília, a professora convida o leitor a redescobrir a cidade por meio de seus principais marcos arquitetônicos. Logo no início da narrativa, destaca como a estátua da Justiça vai além da imagem tradicional da deusa Têmis, especialmente quando se considera o contexto histórico de sua inauguração e episódios recentes, como o atentado de 13 de novembro de 2024 e os atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Criada por Alfredo Ceschiatti e instalada em 1961 na Praça dos Três Poderes, a escultura representa a imparcialidade da Justiça, reforçando a ideia de que ela deve ser cega às aparências. Com o tempo, tornou-se um dos principais atrativos turísticos da capital e passou a ser reproduzida em diversos souvenirs, atraindo ainda mais visitantes após os recentes ataques à democracia.
Diferente das representações clássicas, a escultura não segura uma balança. Ela se inspira na deusa romana Justiça, equivalente à grega Dice — filha de Zeus e Têmis — guardiã dos juramentos humanos. “O gesto da escultura — sentada e segurando a espada de forma pacífica — levanta reflexões sobre o próprio conceito de Justiça no Brasil, especialmente diante de episódios como os ataques recentes. Esses eventos reforçam a carga simbólica da obra e mostram como o monumento se tornou um ponto de disputa e ressignificação ao longo do tempo”, avalia Cristiane.

Ela também comenta sobre o monumento “Os Candangos”, de Bruno Giorgi — uma obra de significado ambíguo na história da cidade. Criada em 1959 e esculpida em bronze, tem oito metros de altura e está localizada na Praça dos Três Poderes. Em entrevista ao Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF), Giorgi contou que a escultura homenageia os trabalhadores vindos de todo o Brasil para construir a nova capital. A peça foi encomendada pela Novacap e aprovada por Oscar Niemeyer. Em 1957, foi exibida na Bienal de São Paulo como Os Guerreiros, mas, ao chegar em Brasília, passou a ser chamada de “Os Candangos” — nome já adotado pelos próprios operários. Inicialmente, seria instalada no Palácio do Planalto, mas foi realocada para a Praça dos Três Poderes. “Não me deram nenhum direcionamento específico; fiz porque gostava da ideia desses dois elementos juntos”, disse Giorgi na época.
Escultor paulistano nascido em 1905, Bruno Giorgi deixou uma marca importante em Brasília. “Os Candangos”, hoje patrimônio cultural reconhecido pela Unesco, é símbolo da construção da cidade, mas também objeto de debate. Para Cristiane, “a representação genérica dos trabalhadores reforça o apagamento de suas identidades e das difíceis condições enfrentadas por migrantes na época”.
Incertezas políticas
O historiador Deusdedith Rocha Jr., pesquisador da ocupação do DF desde o século XVIII, lembra que, embora muitos monumentos tenham sido inaugurados em 1960, outros — como o Palácio do Itamaraty — vieram depois, mas já estavam previstos no projeto original. Inaugurado em 1970 e projetado por Niemeyer, o edifício simboliza a ambição brasileira de se firmar como potência moderna e diplomática. Sua localização no Eixo Monumental reforça o papel da diplomacia na identidade nacional, evidenciado por elementos como o espelho d’água, os vãos livres e a transparência dos salões. Rocha Jr. destaca, no entanto, a dualidade do modernismo brasiliense: “A monumentalidade da cidade reforça uma estética impessoal, associada à centralização e ao autoritarismo da época”, observa.

Durante o projeto, o embaixador Wladimir Murtinho apresentou a Niemeyer as demandas funcionais do prédio. A execução contou com o arquiteto Milton Ramos e o engenheiro Joaquim Cardozo, responsáveis por soluções como o vão-livre monumental, a escada helicoidal e os arcos da fachada. Também chamado Palácio dos Arcos, o Itamaraty representa o Brasil diante do mundo, com materiais nacionais e obras de artistas como Athos Bulcão, Portinari, Volpi, Rubem Valentim e Tomie Ohtake. O paisagismo é de Burle Marx, e o mobiliário, assinado por Sérgio Rodrigues e Bernardo Figueiredo.
Outros monumentos
Entre os marcos mais visitados de Brasília estão a Torre de TV, com vista panorâmica da cidade; o Memorial dos Povos Indígenas, que celebra a cultura ancestral brasileira; a Catedral Metropolitana, ícone da fé e da arquitetura moderna; o Memorial JK, homenagem ao fundador da capital; e a Igreja Dom Bosco, com seus emblemáticos vitrais azuis. O Complexo Cultural da República, que abriga o Museu Nacional e a Biblioteca Nacional, também se destaca como centro de arte e conhecimento.
Além do Plano Piloto
O professor Deusdedith Rocha Jr. propõe ampliar o olhar sobre os monumentos do Distrito Federal, destacando obras fora do Plano Piloto como expressões da memória e da identidade coletiva. Um exemplo é o “Monumento Solarius” — também conhecido como “Chifrudo” — criado pelo artista francês Ange Falchi. Inspirado pelas notícias sobre o esforço dos trabalhadores na construção da cidade, o monumento foi doado ao Brasil pelo governo francês. Inicialmente, seria instalado nas imediações da Torre de TV, mas Lúcio Costa considerou sua estética destoante. Por isso, foi posicionado na entrada da cidade, às margens da BR-040, próximo a Santa Maria, e inaugurado em novembro de 1967 com autoridades brasileiras e francesas. Com 16 metros de altura, mistura aço, chapas galvanizadas, lã de vidro e plástico, ressaltando seu caráter industrial. Foice e facão aparecem como símbolos do candango desbravador. A escultura também é conhecida como “Pioneiros Candangos” e passou por única reforma em 1987, quando foi pintada de azul.

A historiadora Cristiane destaca ainda a Caixa d’Água de Ceilândia como símbolo de luta e pertencimento. Diferente de sua estrutura gêmea em Taguatinga Sul, que permaneceu apenas funcional, a de Ceilândia foi ressignificada pela população e reconhecida como patrimônio histórico pela Secretaria de Cultura do DF em 2013. Com 27 metros de altura e capacidade para 500 mil litros, o reservatório foi essencial para o abastecimento da cidade. Antes da expansão do saneamento, tornou-se ponto de encontro e símbolo da comunidade. “Há registros no Arquivo Público do DF de moradores reunidos, crianças brincando nos chafarizes, mostrando como o espaço foi apropriado pela população”, conta Cristiane. Inaugurada em 1974, a estrutura foi erguida na pedra fundamental da cidade, lançada por Hélio Prates. Sua localização estratégica — próxima à feira, ao hospital e à administração — reforçou seu valor simbólico, diferentemente da caixa de Taguatinga, que, embora idêntica, não teve o mesmo impacto social.

Outro destaque é a escultura do Cantador Anônimo, localizada na Casa do Cantador, também em Ceilândia. Criada por Alberto Porfírio, a obra representa a cultura nordestina e a redemocratização brasileira. A Casa, única obra de Oscar Niemeyer fora do Plano Piloto, foi inaugurada em 9 de novembro de 1986, após reivindicação da comunidade nordestina. Conhecida como Palácio da Poesia, é palco de emboladores, repentistas e amantes da literatura de cordel, consolidando Ceilândia como polo de resistência cultural no DF.