Leucemia me ensinou a prestar mais atenção aos sinais do corpo, diz paciente curada

GABRIEL ALVES
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Uma colega de trabalho alertou a bancária Millena Sousa, então com 23 anos, de que havia uma mancha roxa razoavelmente grande em seu braço. Não tinha acontecido nenhuma briga, queda ou acidente. E a observação veio num momento bem inoportuno: no final de semana seguinte, em janeiro de 2017, Millena, que tinha acabado de se formar em administração, faria uma viagem com colegas para comemorar a conquista.

“Eu não me preocupei no começo porque eu estava numa fase muito estressante no trabalho. Fazia pouco tempo que eu tinha sido efetivada e a minha chefe estava de férias -então estava assumindo muitas atividades. Era muita coisa acontecendo ao mesmo tempo, então eu achei que a mancha era por causa do estresse”, conta.

Mas a mãe de Millena achou que ela deveria ir ao pronto-socorro no mesmo dia. E Millena, para tirar isso da frente, topou. A médica que a atendeu também não deu muita importância, e tratou como hematoma.

“Ela disse: ‘vai ficar verde, depois amarelo, depois vai sumir’. Mas eu insisti que não estava doendo, aí ela pediu um exame de sangue. Depois ela me chamou numa salinha, e disse: ‘É, Millena, realmente seu exame de sangue está alterado. Pode ser qualquer coisa, inclusive uma leucemia.’ Aí me encaminhou para um hematologista.”

O Inca (Instituto Nacional de Câncer) estima que anualmente 11,5 mil pessoas sejam diagnosticadas com alguma leucemia. Com a ideia de reforçar para pacientes e profissionais de saúde a importância do diagnóstico precoce, associações médicas e de pacientes promovem o Fevereiro Laranja, mês de conscientização sobre a doença.

Leucemia é um termo que abarca diferentes cânceres de células do sangue, mas todos eles com algum defeito nos leucócitos (daí o nome), as células brancas do sangue. As leucemias se classificam tanto pela linhagem de células afetadas (mieloide ou linfoide) e pelo padrão de progressão. No caso de Millena era uma leucemia linfoide aguda (LLA). Trata-se de um tipo mais predominante em crianças, e com melhor desfecho justamente nessa população. Nos adultos jovens, cerca de 60% permanece viva após cinco anos de diagnóstico, e essa porcentagem vem aumentando com os anos.

Entre possíveis sinais e sintomas das leucemias, além das manchas, estão anemia, palidez, cansaço, alterações nas plaquetas, sangramentos espontâneos e infecções que não se justificam por outro motivo, explica Breno Gusmão, médico hematologista da BP – A Beneficência Portuguesa de São Paulo, que assistiu Millena.

A ideia, alerta o especialista, não é gerar pânico ou que pessoas passem a procurar hematologistas diretamente. “A gente se apoia em suspeitas de colegas. É o clínico geral ou o médico do pronto-socorro que viu uma alteração no seu exame que vai fazer o encaminhamento.”

Para identificar o tipo de leucemia, é realizado um procedimento conhecido como mielograma. Após a coleta de material no interior da medula óssea (porção interna de alguns ossos responsável pela produção de células do sangue), as células são analisadas. Avalia-se, por exemplo, o aspecto dos núcleos das células, se estão íntegros ou enrugados, ou se há estruturas inusuais nas células, ou se elas estão muito imaturas etc. O exame também ajuda na identificação de mieloma, linfoma e outras doenças do sangue.

Saber exatamente qual é a doença é fundamental, já que nem todas as leucemias são tratadas. Algumas apenas são vigiadas e manejadas, como a leucemia mieloide crônica. “É uma doença típica do idoso, na qual muitas vezes a gente fala para o paciente: ‘você tem uma leucemia, mas é uma leucemia branda. Você vai morrer com ela, e não dela.'”, diz Gusmão.

Já Millena, com uma forma mais agressiva, em menos de uma semana após o surgimento do hematoma já estava se preparando para a quimioterapia. “São os efeitos que a gente conhece: náusea, dores no corpo inteiro e, o que a gente talvez sinta até um pouco mais, por ser mulher, a queda do cabelo”, ela relata.

“Nesse meio tempo minha sobrinha nasceu, em maio. Nós dormimos juntas um dia na cama do hospital, eu ainda carequinha. Foi um suporte emocional muito importante, muito grande para mim”, diz Millena.

Ela também contou com o suporte do grupo de amigos da igreja. “Todos os dias, à noite, eles combinavam um horário para rezar um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. Lembro que eu tinha feito quimioterapia e estava superdebilitada, morrendo de dor. Pensei: faltam cinco minutos para o pessoal rezar. E me preparei para receber essa boa energia, essas boas vibrações. Minha fé, como um todo, foi importante para manter ali na cabeça que ia ficar tudo bem.”

Foi preciso, ainda, passar por um transplante de medula óssea, o que é precedido de uma irradiação do corpo inteiro para matar todas as células do sistema de defesa, preparando o organismo para receber a nova medula.

O doador, que ela conheceu anos depois, tinha se cadastrado no Redome, o Registro Brasileiro de Doadores Voluntários de Medula Óssea, havia pouco mais de um mês. A chance de encontrar alguém compatível varia entre 1 para 20 mil e 1 para 100 mil. O transplante aconteceu em 6 de julho de 2017, e a “pega” da medula veio depois de 11 dias -quando o novo sistema imunológico começou a entrar em ação.

Entre os avanços mais recentes no tratamento de leucemias estão a chegada, nos anos 2000, do imatinibe, que permite desligar uma espécie de interruptor molecular que, na leucemia mieloide crônica, está sempre ligado. Com isso, a doença pode ser controlada. Mais recentemente, nos últimos dez anos, ganharam espaço as células CAR-T, tratamento no qual células são removidas e modificadas geneticamente fora do corpo, para então serem reintroduzidas e, turbinadas, destruírem células doentes.

“Embora as possibilidades de tratamento tenham se ampliado, os desafios ao longo da jornada dos pacientes ainda são significativos. A escassez de profissionais especializados em algumas cidades, a demora na realização de exames laboratoriais e a falta de centros de referência em diversas regiões do país tornam o acesso ao diagnóstico e ao tratamento mais difícil. Apesar de ser uma doença grave, a leucemia é tratável, e garantir um atendimento ágil e eficaz exige um esforço conjunto entre governo, instituições de saúde e sociedade”, afirma a médica sanitarista Catherine Moura, CEO da Abrale (Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia).

O anonimato na doação de medula é mantido antes, durante e nos primeiros anos pós-transplante para evitar extorsões e conflitos éticos. Mas tanto Millena quanto o engenheiro químico Gustavo Rubio, hoje com 33 anos, tinham vontade de conhecer a outra parte.

E, como contam à reportagem, se tornaram “irmãos”. “Mesmo quando não estou aqui, a Mi vai para a casa da minha mãe e passa o final de semana lá”, conta Gustavo, que é de Campinas, mas atualmente mora em Portugal. Milena mora em Osasco, na Grande São Paulo.

Gustavo tornou-se um doador quase que por acaso. “Numa quinta-feira fui a uma festa universitária. E, na sexta, apareci no trabalho com aquela ressaca clássica de estagiário e universitário. Era umas nove horas da manhã, eu já não aguentava o trabalho. Passou o pessoal da segurança do trabalho com aquelas ações de doação de sangue -pensei: ‘deixa eu ir para lá doar sangue, porque é melhor do que ficar aqui’.”

Ao chegar no posto de doação, descobriu que, porque tinha tirado dois dentes do siso dias antes, não poderia doar sangue. “Falei para o médico: ‘doutor, não tenho condição de voltar para o trabalho hoje à tarde. E ele: ‘vamos fazer o seguinte: se você sair daqui, e for lá no Redome, que é aqui em cima, e se cadastrar no banco, eu te dou esse atestado’. Não deu um mês e me ligaram, dizendo que tinha alta compatibilidade com alguém que precisava do transplante!”

A lição que fica para os demais, diz Gustavo, é que “não é preciso esperar ter uma ressaca para se tornar um doador de medula e fazer a diferença na vida de uma pessoa.”

Ao longo da jornada, Millena descobriu que era possível se reaproximar de muitas pessoas, algumas da própria família, é que é preciso parar e prestar atenção aos sinais que o próprio corpo dá. “O corpo fala, mas muitas vezes a gente deixa passar. Se eu não tivesse ligado para aquele roxo, eu poderia ter ido viajar e, de repente, não ter voltado”.

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