‘Me sinto melhor se soubermos que tudo é público’, diz juiz que liberou os ‘arquivos JFK’

São Paulo, 20 – O assassinato do presidente americano John F. Kennedy (JFK) continua sendo um dos eventos mais controversos da história dos Estados Unidos mais de 60 décadas após o ocorrido. A decisão do presidente Donald Trump, em sua primeira semana de governo, de liberar milhares de páginas anteriormente sigilosas criou novas expectativas – e reacendeu antigas dúvidas – sobre a existência de alguma revelação capaz de mudar a narrativa histórica do caso.

O Estadão conversou com o juiz americano John Tunheim, ex-presidente do Assassination Records Review Board, um conselho responsável pelo fim do sigilo de milhares de documentos sobre o caso na década de 1990. Em entrevista por e-mail, o advogado compartilhou sobre o processo de desclassificação e reconheceu que há material relevante a ser divulgado, mas não acredita que vá alterar drasticamente o que já se sabe.

“Na minha opinião, há informações importantes, mas não cruciais, ainda a serem divulgadas. O conselho de revisão protegeu algumas informações relativas à segurança nacional e relações com governos estrangeiros, mas não muitas”, afirma.

JFK foi assassinado a tiros em 22 de novembro de 1963, em Dallas, no Texas, enquanto desfilava em uma carreata em um carro conversível. Lee Harvey Oswald, funcionário de uma escola de Dallas, foi acusado de ser o autor dos três tiros contra o presidente a partir do sexto andar do Depósito de Livros Escolares do Texas.

A Comissão Warren, que investigou o caso, concluiu que ele agiu sozinho. Mas até hoje, persistem dúvidas sobre a conclusão do caso devido a testemunhos conflitantes e ao assassinato de Oswald apenas dois dias depois de ser preso.

Ainda não está claro quando os documentos desclassificados virão a público. Após a assinatura do decreto, em 23 de janeiro, as agências tinham um prazo de 15 dias para apresentar um plano para a desclassificação dos registros relacionados ao assassinato de JFK.

Segundo a agência Reuters, o Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional enviou recomendações a Trump, no início deste mês, sobre quais documentos confidenciais deveriam ser liberados. Mas detalhes do plano, bem como datas, não foram divulgadas pelo gabinete, segundo a agência.

Na semana passada, a decisão ganhou uma nova camada de curiosidade: o FBI disse, em 11 de fevereiro, que conduziu uma nova busca de registros depois que Trump assinou a ordem e encontrou cerca de 2,4 mil documentos recém-inventariados e digitalizados que não eram reconhecidos anteriormente como relacionados ao caso de Kennedy.

De 1994 a 1998, Tunheim presidiu o ARRB, uma agência federal independente criada para supervisionar a identificação e a divulgação dos documentos relacionadas ao assassinato do então presidente americano.

A agência desclassificou milhões de páginas, e suas decisões poderiam ser contestadas apenas pelo então presidente Bill Clinton, que nunca as reverteu, segundo Tunheim. O Conselho foi encerrado em 1998 e tornou mais de 5 milhões de páginas de registros foram disponibilizadas ao público e organizadas nos Arquivos Nacionais.

Tunheim explica que o conselho aplicou critérios rígidos para determinar quais registros poderiam ser divulgados e quais deveriam permanecer sob sigilo. “O Conselho tinha critérios estatutários precisos para aplicar – para continuar a proteger informações confidenciais, uma agência precisava nos provar por evidências claras e convincentes que o dano da divulgação superava o interesse público na divulgação”, explica.

Segundo o juiz, os registros carregavam uma presunção de divulgação. O conselho rejeitou mais de 50 mil pedidos de sigilo de agências governamentais e só manteve restrições em casos específicos envolvendo segurança nacional, métodos de inteligência, segurança presidencial e privacidade pessoal.

“Os amplos requisitos de divulgação significaram que a maioria das informações sobre o assassinato foi desclassificada”, conta

Tunheim destaca que, embora o Conselho tenha protegido algumas informações ligadas à segurança nacional e às relações com governos estrangeiros, o volume de documentos mantidos sob sigilo foi relativamente pequeno.

A expectativa era de que todos os arquivos fossem liberados em 2017, conforme estipulado pela legislação, mas o primeiro mandato do governo Trump reteve parte do material. Atualmente, segundo ele, apenas registros de inteligência permanecem protegidos, enquanto todos os documentos de aplicação da lei já estão acessíveis ao público.

Questionado sobre a expectativa diante da nova liberação, Tunheim afirmou que está particularmente interessado no arquivo de George Joannides, um agente da CIA envolvido na supervisão de grupos de exilados cubanos nos anos 1960, incluindo a Frente Revolucionária Cubana, organização ligada ao grupo anticastrista Movimento Democrático de Recuperação (DRE).

Joannides, em 1978, foi designado como intermediário da CIA para o Comitê Seleto da Câmara sobre Assassinatos. No entanto, ele nunca revelou seu papel anterior no financiamento e monitoramento do DRE, um grupo que teve contato com Lee Harvey Oswald meses antes do assassinato do presidente. Até hoje, essa ocultação levanta questionamentos sobre a extensão do envolvimento da agência.

“A CIA tem protegido seu arquivo – aparentemente até mesmo de nós. E há vários arquivos que detalham mais da investigação da CIA sobre o assassinato. Não acho que a divulgação seria impactante, mas não posso dizer com certeza”, afirma.

O ‘Deep State’ de Trump

A resistência das agências de inteligência em liberar documentos sobre o caso Kennedy alimentou a desconfiança pública e diversas teorias da conspiração. O próprio Trump, em sua retórica política, frequentemente menciona a ideia de um “Deep State” – um suposto grupo de agentes públicos que operaria nos bastidores para esconder a verdade do povo.

Questionado se há evidência de que agências de inteligência retiveram a informação, Tunheim assentiu.

“Sim, as agências de inteligência retiveram informações e tenho certeza de que argumentarão para continuar a reter algumas. Isso é o que as agências de espionagem fazem – estão sempre preocupadas que a liberação de informações possa comprometer nossa segurança nacional”, disse.

No entanto, ele ressalta que não acredita que nenhum desses registros teria qualquer impacto na segurança nacional mais de 60 anos após o assassinato, bem como rejeita existência de uma rede oculta operando secretamente dentro do governo.

“Os funcionários do governo federal, em sua maioria, são servidores públicos excepcionais que fazem um excelente trabalho e executam as leis de boa-fé.”

Mesmo sem expectativas de revelações explosivas, Tunheim acredita que a liberação completa dos documentos ainda tem grande importância para a sociedade americana.

“Acho que é vitalmente importante para nós sabermos que todas as informações relacionadas ao assassinato foram finalmente divulgadas. Isso não acabará com as crenças em conspirações, mas será um passo importante para garantir ao público que todas as informações foram liberadas”, avalia. “Pode nunca acabar com essas alegações, mas me sentirei mais confortável se soubermos que tudo está no domínio público.”

Um Kennedy com Trump

Um dos aspectos políticos inesperados dessa nova etapa de desclassificação é a participação de Robert F. Kennedy Jr. na governo Trump. O Senado o aprovou, no dia 13 de fevereiro, como secretário de Saúde dos Estados Unidos, apesar da oposição de democratas e cientistas que denunciam, em particular, suas posições antivacina.

Integrante de uma das famílias mais influentes do Partido Democrata, sua aproximação com um governo republicano levantou questionamentos sobre sua possível influência na forma como a narrativa oficial do assassinato de JFK será moldada.

Quando Trump assinou a ordem executiva em janeiro, Kennedy celebrou a decisão, como uma medida de “transparência de governo”. No passado, ele já fez declarações sobre a CIA estar envolvida na morte de seu tio.

“Há evidências esmagadoras de que a CIA estava envolvida em seu assassinato”, disse Kennedy em uma entrevista de 2023 com John Catsimatidis na estação de rádio WABC 770 da cidade de Nova York “Acho que está além de qualquer dúvida razoável neste momento “

Nesta entrevista, ele disse que seu tio foi alvo devido à sua recusa em enviar forças americanas para o Vietnã.

“Quando meu tio era presidente, ele estava cercado por um complexo militar-industrial e um aparato de inteligência que estava constantemente tentando fazê-lo ir para a guerra no Laos, Vietnã, etc.”, disse Kennedy a Catsimatidis.

Sobre o papel de Robert F. Kennedy Jr., Tunheim é cauteloso, mas aponta um possível benefício. “Admiro profundamente muitos membros da família Kennedy. Não tenho opinião sobre Robert Kennedy Jr., mas se ele argumentar com sucesso por uma divulgação completa dos registros, eu ficaria grato por essa contribuição. É hora de divulgar todas as informações.”

Estadão Conteúdo

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