RTV-ES e a precarização na comunicação pública: a contratação de jornalistas por designação temporária (DT)

(Imagem: Mircea Iancu/Pixabay)

No início de novembro de 2024, ao julgar a legalidade da Emenda Constitucional 19/98, questionada pela ADIn 2.135/DF, de autoria do PT – Partido dos Trabalhadores, o Supremo Tribunal Federal Brasileiro (STF) admitiu flexibilização do regime de contratação de mão de obra no serviço público agora englobando a Administração Direta (aquela sob controle direto do Poder Executivo seja federal, estadual ou municipal) no país. Antes, a contratação que era amparada no Regime Jurídico Único (RJU) estatutário, lei própria que garante a estabilidade (que é do cargo, não do servidor, por uma questão de segurança jurídica) mediante critérios técnicos, a partir desta decisão poderá ser feita via CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), nos mesmos ditames da iniciativa privada.

Tal flexibilização de contratação já vinha, mesmo que sutilmente, sendo ensaiada desde a Reforma Gerencial do Estado (gestão do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, nos anos 1990, de onde provém a própria EC 19/98) sob o mantra neoliberal capitalista da “modernização, competitividade e eficiência” atrelado à retórica da redução de custos e ao desinchaço da máquina pública, típico do “governo empresarial” esvaziado do compromisso de servir, conforme afirmam Pierre Dardot & Christian Laval (2016). E agora envolve a desobrigatoriedade do regime jurídico único e o fim da estabilidade, e só vem acachapar a situação já precária da comunicação pública no Brasil, seja ela estatal ou governamental, articulada na esfera pública via interação social (DUARTE, 2012), no que tange à degradação das condições laborais envoltas no trabalho jornalístico.

Sejam repórteres, produtores, assessores, “agentes de comunicação social” – conforme qualificam alguns editais a função jornalística – ficam todos sujeitos a mais constrangimentos organizacionais para produzir informação de qualidade, já também atingidos de forma dura em sua carne com os impactos negativos referentes à desregulamentação trabalhista e desvalorização salarial desde a queda da exigência do diploma para o exercício profissional, também decidida pelo STF, em 2009. Dentre tais impactos, podemos exemplificar em consulta a editais na página Jornalistas concurseiros, via Instagram, o flagrante desrespeito tanto à carga horária diária/semanal quanto ao piso salarial convencionado em cada região do Brasil (ex: Fundação Hospitalar Getúlio Vargas (RS), cargo: jornalista, 150h mensais com salário de R$4.046,01), já que não há um piso nacional unificado para a categoria. Assim como a exigência de titulação de nível médio para funções que devem ser tipicamente desempenhadas por jornalistas graduados (ex: Câmara de Caibi, SC, cargo: assessor de imprensa, escolaridade: ensino médio completo, salário: R$2.733,73 (20h).

Talvez, justamente por não termos um arcabouço legal que deveria ter sido pautado pelas órgãos representativos da classe jornalística junto ao Poder Público exigindo uma porcentagem mínima de contratação no serviço público de jornalistas via concurso e submetidos ao RJU (estáveis) e com funções desempenhadas estritamente a partir de regras legais de conduta ético-moral sob pena de punição no cargo é que, historicamente, tais funções têm sido ocupadas majoritariamente por “amigos do rei” em cargos em comissão e confiança (principalmente nas assessorias de imprensa públicas ligadas aos órgãos governamentais), de livre nomeação e exoneração, portanto, sujeitos ao apadrinhamento e a interesses políticos e que, muitas vezes, ainda desempenham função diretiva de chefia.

Contudo, o aprofundamento da precariedade no trabalho jornalístico vem ganhando novos contornos que envolvem o aparato legal quando atinge a estrutura de televisões e rádios públicas estatais.

A legalização do “Jornalista público DT” na radiodifusão

No Espírito Santo, para sanar os problemas estruturais (como a redução da programação com a falta de trabalhadores servidores devido à crescente demanda por aposentadoria, inclusive com iminente risco de fechamento) causados pela falta do que seria o primeiro concurso público, o próprio governo estadual decidiu mudar, por meio da discussão de um “projeto de transformação”, em 2024, o regime jurídico do Sistema Rádio e TV Educativa (TVE-ES que, assim como a Rádio Espírito Santo é gerenciada pelo sistema RTV-ES) e que, antes autarquia de direito público, vinculada à Superintendência Estadual de Comunicação Social (Secom), agora passa a funcionar como fundação pública de direito privado.

Por conseguinte, já em outubro de 2024, após a transformação jurídica, a Fundação Carmélia Maria de Souza de Comunicação e Cultura (mantenedora da RTV-ES) publica edital de processo seletivo simplificado para contratar 22 profissionais para área-fim em regime de designação temporária (DT). Prática que gera insegurança quanto ao vínculo de trabalho pela descontinuidade e que já vem sendo implementada não só no ES, inclusive, como em todo o país dentro do setor de educação e sob críticas quanto à padronização e mecanização do ato de ensinar ligado, por exemplo, a índices de desempenho quantitativos.

 

Ressalta-se que, por consequência dessa mudança estrutural dentro da RTV-ES (a TVE-ES, em específico, completa 50 anos de funcionamento em 2024), caso venha o tão propalado concurso público prometido há décadas, a contratação de jornalistas poderia ser feita em regime celetista. Ainda assim, há aqui um contrato pretensamente indeterminado (como os concursos públicos na Administração Indireta, sejam empresas públicas como os Correios ou sociedades de economia mista como a Petrobras etc). Curioso nesse processo é, digamos, a implementação sem barreiras do “Jornalista público DT”, que nada mais é do que um jornalista contratado em regime temporário (também sem estabilidade formal, porém, por contrato determinado dentro de períodos governistas específicos), o que pode ir de encontro ao que expõe o próprio Sindicato dos Jornalistas do Espírito Santo em matéria em seu site disposta antes mesmo da publicação do processo seletivo:

“A defesa de práticas democráticas de comunicação na futura fundação é primordial para os Sindicatos já que visões equivocadas acabaram transformando a TVE e a Rádio Educativa em porta- vozes de figuras de governadores, em detrimento de uma pauta mais plural.“ (Sindijornalistas-ES, 26/09/2024)

Veículos de comunicação pública, como a RTV-ES, não visam o lucro nem o marketing político e devem ser, a priori, instrumentos de fortalecimento da identidade, cultura e soberania de um povo. Portanto, há um contraste sinuoso na exigência imprescindível no que se refere às práticas institucionais/laborais que devem guiar-se única e exclusivamente pelo interesse público, em detrimento dos desejos políticos de cada governo, e a aceitação (mesmo que “quebra-galho”) de contratação de trabalhadores jornalistas profissionais temporários, sem criação de vínculo empregatício duradouro, mas possivelmente submetidos às chefias comissionadas e sem afinidade com a história e as demandas da instituição. Como também nos parece contraditório quanto aos modos de financiamento e manutenção, já que, de acordo com a matéria no site do Sindicato, a Fundação poderá buscar recursos no mercado, entretanto, ainda não foi especificado de que forma será feita tal captação.

A partir da supremacia do interesse público sobre o privado, diante de toda esta reestruturação produtiva (ANTUNES, 1999) que impacta diretamente os modos de produção do trabalho jornalístico na comunicação pública, como garantir ao cidadão ouvinte/telespectador de veículos como a RTV-ES, por exemplo, que não haverá interferências seja de políticos e/ou de terceiros e grupos empresariais em seu modus operandi e em seu conteúdo? Quais os mecanismos para fazê-lo, de modo que a sociedade civil possa efetivamente participar de forma direta do seu controle social?

Pelas regras atuais, definidas na Lei 8745/1993, a contratação de trabalhadores via contrato temporário poderia ser feita apenas por “necessidade temporária excepcional de interesse público”, caso que refletimos se é aplicado à RTV-ES após a transformação em Fundação na medida em que há expectativa de firmar-se agora contratos temporários que podem, com prorrogação, ter duração de até 2 anos – medida que pode retardar ainda mais a realização do concurso público, mesmo que este venha (se vier) sob regime celetista (CLT) e não estatutário, ou seja, sem a estabilidade que visa proteger os servidores de pressões externas e influências políticas e propiciada pelo RJU.

Salienta-se que tal contratação via DT já vem sendo apresentada, não via exceção mas como regra geral, na tentativa de ser “normalizada/legalizada”, por meio da Reforma Administrativa (ainda em curso), em debate no Congresso, desde 2020 (gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro), que já pretendia acabar com o Regime Jurídico Único que garante a estabilidade dos servidores efetivos – medida agora sacramentada pelo STF, em 2024, ao ressuscitar uma Emenda Constitucional quando provocado pelo próprio Partido dos Trabalhadores (partido de situação governista) e sem impedimentos na gestão do Presidente Lula.

Referências:

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Editora Boitempo, 1999

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

DUARTE, Márcia Yukiko. Comunicação e cidadania. In: DUARTE, Jorge (Org.).  Comunicação pública: Estado, mercado, sociedade e interesse público. 3. ed. São  Paulo: Atlas, 2012, p. 95-115.

Sindijornalistas-ES. Sindicatos apresentam propostas ao projeto de transformação da RTV-ES em Fundação. Publicado em 26.set.2024. Disponível em: http://www.sindijornalistases.org.br/sindicatos-apresentam-propostas-ao-projeto-de-transformacao-da-rtves-em-fundacao/ . Acesso em 20.dez.2024

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Priscila Bueker Sarmento é jornalista, Mestra em Comunicação e Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e Integrante do Núcleo de Pesquisa e Ação Observatório da Mídia: direitos humanos, políticas, sistemas e transparência (UFES/CNPq).

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